Crítica de Videojogos
Texto, Media e Experimentalismo.
O professor Michael Abbot do blog Brainy Gamer levantou recentemente uma discussão muito interessante à volta do modo como jornalisticamente se analisam, discutem e descrevem os videojogos, nomeadamente os mais recentes exemplos experimentais como Journey, Unfinished Swan e Papo&Yo [1]. Ele realizou uma análise das palavras utilizadas nas críticas, e chegou à conclusão que o vocabulário utilizado é muito homogéneo e que descreve de forma muito genérica e vaga componentes de jogo que mereceriam análises mais completas e em profundidade.
O texto de Abbot levantou-me duas questões distintas que pretendo tratar aqui: a) o quadro de análise; e b) o meio de análise. No primeiro estamos a falar daquilo que preocupa Abbot, e que passa por compreender melhor o que é um videojogo, defini-lo enquanto objecto, arte, e experiência e daí construir um conjunto de novos termos capazes de melhor descrever os jogos. No segundo ponto, falarei do problema que é discutir um meio de características audiovisuais e interativas por meio de elementos meramente textuais, ou seja o modo como ocorre a “tradução” de um meio para o outro.
Começando pelo quadro de análise dos videojogos. A arte não é virgem e tem, pelo menos, mais de uma década de discussão académica profunda, basta ver que a revista científica Game Studies iniciou-se em 2001 [2]. O grande objectivo da Game Studies passava exatamente por desenvolver ferramentas de análise dos videojogos, enriquecer a forma como compreendemos os jogos e como os interpretamos. A grande questão é que quando falamos das obras elas são intrinsecamente distintas, mas quando falamos das pessoas, elas são as mesmas que experienciam o jogo, o filme, ou a pintura. Daí que o discurso não consiga ser tão singular como possamos pensar. Ou seja, numa análise completa de um jogo, não posso ater-me apenas ao objecto em si, preciso de compreender de onde foi emanado, em que contexto foi jogado, para quem foi criado, etc. E isto são tudo questões que são trabalhadas na análise de qualquer forma de expressão artística, o que levou a que ao longo dos últimos dois séculos se tivessem procurado estabelecer diferentes formas de abordar as mesmas questões. Isto não quer dizer que os discursos se tenham homogeneizado, como refere Abbot em relação ao discurso jornalístico sobre jogos, antes pelo contrário.
O que aconteceu foi que criámos uma imensidade de quadros de análise distintos, e que podem ser utilizados na análise da grande maioria das obras de arte, independentemente do meio em que se expressam, seja pintura, filme ou jogo. Porque podemos analisar uma obra a partir de quadros teóricos bem definidos como: a narratologia, o formalismo, o estruturalismo, o pós-modernismo, o feminismo, o marxismo, a semiótica, a psicanálise, a psicologia cognitiva, etc. etc. Ou seja, utilizar um quadro de argumentos previamente sintetizados e acordados entre um grupo de pessoas que permitem discutir em detalhe componentes específicas de uma obra expressiva, neste caso um videojogo.
"O que aconteceu foi que criámos uma imensidade de quadros de análise distintos, e que podem ser utilizados na análise da grande maioria das obras de arte."
A título mais detalhado, sobre cada um destes quadros de análise, podemos compreender melhor de que modo são apresentadas as relações sociais num jogo (usando Marxismo), perceber de que modo a mensagem é estruturada (usando a narratologia, o estruturalismo ou pós-modernismo), perceber de que forma é apresentada a ideia de mulher no jogo (com o feminismo), procurar compreender em maior profundidade os significados patentes no jogo (usando a semiótica, a psicanálise, etc.), perceber de que modo o jogo usa as formas visuais, sonora e interativas (fazendo uso do formalismo e da estética), perceber de que modo o jogo estimula o jogador (psicologia cognitiva), entre muitas outras abordagens possíveis, e dentro de cada uma destas temos uma imensidade de sub-quadros de análise possíveis.
Daqui percebe-se que as possibilidades analíticas dos videojogos e das obras de arte são enormes, mas percebe-se também, que só compreenderá estas leituras quem estiver familiarizado com os quadros de análise em questão, e é isso que afasta toda esta riqueza de análise da simples crítica jornalística. Não porque o público seja pouco educado, mas porque a crítica deve servir o maior número de pessoas possíveis, e não apenas nichos de entendidos em cada matéria.
Tendo em conta este problema dos discursos estarem dirigidos a cada minoria que estuda cada um destes quadros analíticos, cada uma das artes tem procurado sempre desenvolver o seu próprio discurso interno. Ou seja, talvez fosse interessante que todos os que estudam e analisam jogos pudessem discutir a sua arte utilizando um mesmo e único quadro de análise, rico mas comum. O mesmíssimo problema aconteceu nos estudos fílmicos, e nos anos 1970 quase se conseguiu “fechar” a análise cinematográfica, inicialmente dentro do quadro da linguística e depois dentro do quadro da psicanálise. Mas quando aqui digo “fechar”, digo-o num sentido pejorativo, e porquê?
Bem, simplesmente porque o discurso artístico é distinto do discurso científico. Na matemática temos teoremas e corolários provados, demonstrados e aceites por toda a comunidade. Na química temos tabelas, como a periódica dos elementos químicos, que servem a todos, químicos e não químicos, assim como na física temos leis que descrevem com exatidão reconhecida por todos o modo como o mundo é regulado, exemplo das Leis de Newton ou da Teoria da Relatividade. O problema é que a análise artística não segue os mesmos padrões da análise científica. Ou seja, não existe um carácter estrito, objetivo e comprovável. Porque o objectivo analítico é praticamente oposto. Enquanto a ciência procura chegar às unidades mínimas que explicam a razão do fenómeno, a discussão artística procura interpretar, enriquecer e alargar o alcance significativo do objecto. Simplesmente porque delimitar a possibilidade discursiva e analítica à volta de uma obra de arte é no fundo limitar o potencial impacto dessa obra na sociedade.
Tendo em conta que o texto já vai longo, não posso entrar em detalhe no ponto “b)” sobre a questão da análise por via do texto, mas proximamente escreverei em detalhe sobre este ponto aqui. Contudo quero deixar apenas a seguinte ideia sobre este, e que passa pelo facto de estarmos a tentar descrever e compreender um objecto criado, elaborado e experienciado num determinado meio (videojogos) com ferramentas de um outro meio (texto). Ou seja, na análise académica e jornalística, o que fazemos é colocar em palavras escritas, ideias que nos foram “transmitidas” por meio de imagens, sons e interatividade. Logo, além de estarmos a tentar compreender o objecto, ainda estamos a operar um processo de tradução de um meio para outro. E é por isso que talvez os discursos mais ricos sobre a arte dos videojogos não possam ser encontrados em texto, mas talvez o sejam nos jogos que procuram quebrar as convenções, experimentando novas formas e novos discursos, como é o exemplo de Journey, entre outros. Jogos que fazem o jogador refletir sobre as suas anteriores experiências de jogo, que o levam a questionar-se sobre o significado do jogo, que o obrigam a autoanálise do sentimento do jogo, que no fundo colocam em evidência a discussão sobre a essência daquilo que é um videojogo.
[1] Emotional experience through a gameplay world, Michael Abbott in Brainy Gamer, 24/10/2012,
[2] Game Studies, The International Journal of Computer Game Research, ISSN:1604-7982