A sintonia entre História e Jogo
“Grounded”, como foi feito “The Last of Us”.
Esta semana a Sony colocou no seu canal YouTube, em exclusivo, o documentário "Grounded: The making of The Last of Us" [1] que relata as várias fases e dimensões do desenvolvimento do videojogo "The Last of Us" (2013) da Naughty Dog [2]. O documentário é uma excelente oportunidade para ficarmos a perceber melhor o que está por detrás de um videojogo, como é concebido, e o que é necessário para o tornar realidade. Se dúvidas houvesse sobre aquilo que define um videjogo, julgo que ao longo desta hora e meia fica mais do que esclarecido que estamos a falar de um Artefacto Audiovisual Interativo.
O detalhe que vemos colocado no desenvolvimento de "The Last of Us" é absolutamente impressionante. Não é apenas uma questão de ter uma equipa enorme de pessoas, é ter uma equipa enorme de especialistas em cada uma das diferentes áreas. Especialistas em realização cinematográfica (Neil Druckmann), em direcção de jogo (Bruce Straley) e em design de jogo (Jacob Minkoff); especialistas em concept art, em ilustração, em modelação e arquitetura; especialistas em captura de movimento, animação, iluminação e em cinematografia; especialistas em criação musical e em design de som; especialistas em programação de jogo e em inteligência artificial; especialistas em desenho de interfaces e em desenho de puzzles; especialistas em controlo de qualidade e testing; e claro, grandes atores, performers capazes de sentir aquilo que se quer transmitir.
Dentro de cada especialidade o grau de detalhe aumenta ainda mais. No desenho de jogo quando atiramos uma pedra a um NPC, ao nos aproximamos dele, este já vai estar rebaixado, meio aniquilado; quando executamos um murro, ele já vai ter de ser animado de cima para baixo e executado no momento certo; o NPC cai no chão, e aí podemos atirar nele. Ou seja uma cena deste tipo envolve três aproximações a um personagem completamente distintas, que podemos seguir por esta ordem, ou não, mas que precisam de ser animadas, programadas, e depois desenhadas em termos de timings e frames de animação. O mesmo vai acontecendo ao longo do jogo, quando temos de fazer ações que já se tornaram rotina, como puxar uma escada, e as animações que são despoletadas em cada um desses momentos dependem do sentimento que a narrativa atribui naquela área. Ou seja, mecanicamente estamos a fazer o mesmo, mas emocionalmente tudo no conduz a sentir a ação de forma diferente, evitando a percepção de repetição.
E é exatamente isto que permite ao jogador compreender como o mundo físico do jogo sofre as suas consequências, permite que o jogador aprenda a dominar as técnicas de jogo. Ou seja, não se trata apenas de eliminar, matar, mas utilizar a melhor técnica disponível naquele momento, para o tipo de personagem ou problema em questão, e da melhor forma possível, ou da forma que melhor lhe convier. Por isso quando acabamos o jogo sentimos que houve uma progressão. Aprendemos a dominar aquele ambiente, aquelas ferramentas, aquelas armas, a lidar com a Ellie e com os outros personagens. Crescemos com o videojogo!
A Naughty Dog assume os videojogos como um meio de contar histórias, tratando-o como igual aos livros, aos comics, à televisão ou ao cinema. Um dos melhores testemunhos sobre o modo como a história se interliga com o jogo, é dado por Jacob Minkoff,
"Se existe uma parte no jogo, em que os personagens estão com grande dificuldade de sobreviver, então nós queremos que o jogador sinta isso, tendo mais dificuldade em encontrar itens de sobrevivência no ambiente, sendo mais difícil sobreviver. Nós fazemos o jogador sentir fome de itens, ao mesmo tempo que os personagens sentem que a fome os está a desgastar. E é então que expomos algo em que o jogador pode conseguir itens, e é aí que o jogador sente o alívio, refletindo que poderia ter encontrado um combate e não teria como se defender... é algo hitchcockiano, em que o medo que tu vês é menos significante que o medo que desenvolves dentro da tua cabeça."
Ou seja o balanceamento do storytelling é aqui uma constante, tudo funciona em função da história, e o gameplay é totalmente desenhado em função dela. As nossas ações refletem as ações dos personagens, mas mais do que isso refletem aquilo que os personagens sentem, e é por isso que "The Last of Us" é um dos maiores marcos da história dos videojogos, não porque é tecnologicamente inovador, ou espetacularmente impressionante, mas porque soube gerir todos os recursos de uma forma balanceada e profundamente detalhada, capaz de garantir uma sintonia perfeita entre narrativa e jogo.
Porque é através desta forma tão perfeitamente entrosada como o videojogo foi desenhado que algumas pessoas acabam no final por ter a sensação que existem demasiadas "cutscenes", ou que as partes em que existe interatividade é apenas a das lutas, quando na verdade o que temos é uma sintonia entre o contar de história e a interatividade, uma sintonia perfeita entre "assistir" às inevitabilidades de um mundo e as ações que podemos "fazer" sobre este mundo para o alterar. Porque temos um mundo que reage convincentemente à nossa presença. A história não se altera, mas o mundo de jogo sente a nossa presença ali, nós fazemos diferença naquele espaço, contribuímos claramente para a progressão da história.
Sabemos que ela está escrita, mas sentimos que somos parte daquele momento, essencialmente porque estamos em sintonia com o sentir dos personagens, porque sentimos que progredimos na mestria do jogo e finalmente porque sentimos que não existe apenas uma forma de abordar e resolver as questões de jogo, escolhemos a nossa própria abordagem, seja evitando um combate e escapando ao mesmo habilmente, seja optando por continuar e não apanhar todos os itens, seja por abrir portas que não eram cruciais ao desenvolvimento no terreno, seja porque temos de escolher lugares menos perigosos para construir as nossas armas no HUD, uma vez que não ficamos em modo pausa, mas tudo continua a fluir à nossa volta. Sentimos que estamos a trilhar o nosso caminho, e é isso que torna o jogo verdadeiramente interativo. É isso que faz com que não seja um jogo apenas de luta, nem um jogo que conta uma história em cutscenes, porque é o nosso jogo, a nossa forma de o experienciar.
Já perto do final do documentário Anthony Newman, um dos designers de jogo, explica como tudo isto foi possível, dizendo: "o meu videojogo preferido, é fazer videojogos."
[1] Documentário "Grounded: The Making of The Last of Us" produzido por Area 5, Junho, 2013. [2] Porque é inovador The Last of Us? In Virtual Illusion, Setembro 2013