A Importância do Brincar
O novo mundo das interfaces físicas.
Possuímos em nós uma necessidade inata de brincar, tal como possuímos de comer ou procriar. É um sentimento primário do nosso sistema que nos consome, nos impele para a ação, recompensando-nos com a libertação de dopamina, uma neurohormona que provoca enormes sensações de bem-estar. Jaak Panksepp concluiu nos seus estudos que este "sistema do brincar" é fundamental para o desenvolvimento emocional e cognitivo, nomeadamente em termos da aprendizagem de socialização. Mas a geração deste comportamento só é possível quando o pré-requisito de bem-estar está preenchido, uma vez que o brincar é inibido com a fome e as emoções negativas tais como a solidão, a raiva ou medo. Nesse sentido Brian Sutton-Smith diz-nos "O oposto do brincar, não é o trabalho. É a depressão".
John Byers refere que o comportamento do brincar aparece pelos dois anos e desenvolve-se com grande intensidade até à puberdade, altura em que estabiliza. Isto acontece em sintonia com o desenvolvimento do cerebelo, que requer o máximo de estimulação somática possível, ou seja o máximo de inputs por via dos sentidos, para se formar. O quantidade e qualidade do brincar têm um impacto direto na formatação do nosso cérebro, na criação de ligações neuronais que vão permitir criar mentes mais ou menos reativas e adaptativas. Deste modo continuar a brincar, mesmo depois da puberdade, permitirá continuar a remodelar as nossas ligações cerebrais, continuar a transformar o nosso cérebro, fazer com que este evolua e se adapte a novas realidades.
Jaak Panksepp refere que o brincar aumenta as habilidades para "inovar e pensar criativamente", que abrem caminho à criação artística. Aliás Brian Boyd refere-se ao processo de criação de arte, como um "brincar cognitivo". A nossa mente brinca com as formas, os ritmos, e os estilos em busca de padrões. A nossa natureza impele-nos para a organização do caos, e o brincar mental com imagens, sons ou conceitos acontece com grande avidez pela busca de padrões, como se fossem peças de lego servindo a construção de formas imaginárias. Retiramos prazer do simples brincar físico, assim como retiramos prazer do brincar mental. A compensação é servida em forma de bem-estar e alegria quando se consegue atingir uma organização dos elementos dispersos. De certo modo é este prazer que explica o nosso sentir pela arte, e em concreto explica em termos evolucionários o surgimento da música.
Mas a questão relevante aqui é que o brincar mais transformativo, capaz de estimular a criatividade e a inovação, decorre sobretudo das ações físicas, do movimento corporal, da variabilidade de inputs somáticos. Stuart Brown refere mesmo que os videojogos são menos eficientes no processo aprendizagem quando comparados com o brincar puro, que ocorre num mundo tridimensional físico e faz uso dos sentidos. Modelos escolares como o existente na Finlândia (um dos países com um dos melhores sistemas de educação mundial) ou professados pelo método de Waldorf, vão exatamente neste sentido.
Nestes modelos o recurso à experimentação física e à natureza como cenário de trabalho são a norma, o desenho do processo de aprendizagem leva em conta todo o aparelho sensorial do estudante. Outro exemplo mais recente, cruzando com tecnologia digital, é o laboratório Smallab (Situated Multimedia Art Learning Lab) da Arizona State University que se define como um laboratório de criação de Ambientes de Aprendizagem Corpórea. Aqui são criados videojogos que deixam para traz os botões, e obrigam a uma total ativação do corpo para interagir com o mundo virtual e aumentado. Uma das inovações do trabalho deste grupo é que tem conseguido desenvolver jogos físicos que englobam desde as tradicionais disciplinas da matemática e física até à filosofia e poesia.
Toda esta discussão vem no encalço das novas interfaces desenvolvidas no campo dos videojogos nos últimos anos. Passámos mais de 30 anos agarrados a joysticks e gamepads e em poucos anos a Nintendo com o seu Wii Remote foi capaz de provocar uma autêntica revolução, atraindo para o domínio dos videojogos, públicos de todas as faixas etárias e de ambos os géneros. Essa capacidade de atração levou a que as outras duas grandes marcas de videojogos lançassem também abordagens próprias (Sony com Move e a Microsoft com Kinect) de interação física com os jogos. No fundo o que podemos perceber desta revolução é que as pessoas se sentem melhor a jogar fisicamente, uma vez que como vimos acima, esta ação induz maiores níveis de compensação neurohormonal.
"Passámos mais de 30 anos agarrados a joysticks e gamepads e em poucos anos a Nintendo com o seu Wii Remote foi capaz de provocar uma autêntica revolução."
Ora em termos de ação humana o brincar, ao contrário do jogar, é uma atividade espontânea desprovida de regras rígidas e de obrigatoriedades, é ainda uma atividade natural que resulta em momentos muito intensos de ação mas de reduzida duração. Tendo em conta este cenário percebemos porque é que os jogos de maior sucesso nestas plataformas têm sido os jogos casuais. Os jogos casuais permitem ao jogador uma entrada muito rápida na ação do jogo, exigindo uma reduzida aprendizagem para iniciar. Para além disso funcionam muito bem em pequenas doses, é possível realizar um círculo de ação quase completo do jogo em muito pouco tempo.
Deste modo estes jogos enquadram-se perfeitamente nas necessidades básicas do brincar, através de uma reduzida obrigatoriedade de aprendizagem de regras, assim como reduzido tempo dedicado. O tempo aqui é crucial em termos de ritmos, ou seja a pessoa pode entrar e sair do jogo ao fim de pouco tempo sem ficar com a frustração de quem ainda nem sequer tinha começado a jogar, ou de quem deixa algo importante a meio.
O quadro aqui traçado demonstra o potencial das novas interfaces, na atração de novas demografias, com a criação de novas emoções de jogo, assim como abre todo um novo potencial para o desenvolvimento de atividades específicas de aprendizagem. Por outro lado evidencia os limites ou parâmetros dos modelos de jogo ideais para este tipo de interfaces que deixam de fora todo um género de videojogos que se tornou referência na jogabilidade com interfaces tradicionais, a saber os RPGs, a Aventura Gráfica, a Ação-Aventura entre outros. No fundo os jogos que recorrem à criação de sentido através da narrativização, que emulam atividades mentais do tipo das providenciadas pela literatura ou cinema.
Saber mais:
- Brian Sutton-Smith, (1997), The Ambiguity of Play, Harvard University Press
- Panksepp, Jaak, (1998), Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal Emotions, Oxford University Press
- Brian Boyd, (2009), On the Origin of Stories: Evolution, Cognition, and Fiction, Harvard University Press
- Stuart Brown, (2010), Play: How it Shapes the Brain, Opens the Imagination, and Invigorates the Soul, Avery Trade, USA
- John Byers e Marc Bekoff, (1998), Animal Play, Cambridge University Press
Nelson Zagalo é professor de media interativos na Universidade do Minho e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.