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A Memória da Experiência

Razões da estrutura do storytelling.

Trago um assunto relevante para os jogadores, mas também relevante para quem analisa e faz crítica de videojogos, assim como para quem desenvolve. Acreditamos que o mais importante de um jogo está relacionado com as experiências que sentimos ao longo do tempo que o jogamos. Contudo as experiências sentidas ao longo de um jogo não se repercutem nas nossas memórias como uma mera soma de experiências. Ao longo do nosso processo evolucionário desenvolvemos processos cognitivos que sintetizam as experiências sentidas e guardam apenas determinados elementos dessas. Antes de detalhar o que fica verdadeiramente registado, vejamos uma experiência realizada por Daniel Kahneman e Amos Tversky [1].

Um grupo de sujeitos foi submetido a um processo em três fases, em que experimentavam dor durante intervalos de tempo distintos e com variação de intensidade da estimulação de dor. Assim na primeira fase os sujeitos tinham de manter uma das suas mãos dentro de água bastante fria, suficiente para criar dor ligeira, durante 60 segundos. Numa segunda fase, os sujeitos tinham de manter a mão dentro de água por 90 segundos, sendo que nos primeiros 60 segundos a temperatura era idêntica à da fase um, mas nos últimos 30 segundos, a água era ligeiramente aquecida sem eles se darem conta. Após as duas fases as pessoas foram questionadas sobre como desejavam realizar a terceira fase, dando a escolher um experimento igual ao da fase 1, ou igual ao da fase 2. 80% das pessoas optaram por repetir a fase 2. De um ponto de vista estritamente racional, isto não fazia qualquer sentido. Ou seja a fase 2, para além de toda a dor infligida na fase 1, ainda adicionava mais 30 segundos de dor, ainda que ligeiramente menor. Esta análise foi realizada com vários outros cenários (ex. exames de colonoscopia; toma de injecções dolorosas, etc.), e ainda com animais em laboratório, sendo que os resultados se assemelharam sempre.

Estes experimentos serviram para nos ajudar a compreender como é que a nossa memória guarda as experiência vividas. Descobrimos que em vez de guardar uma soma de todos os momentos sentidos, esta guarda apenas duas variáveis da experiência: o momento mais intenso e o momento como acaba. A nossa memória ignora completamente a duração da experiência, assim como restantes momentos menos intensos. No caso da mão dentro de água, a memória guarda que em ambas as fases a intensidade mais alta foi idêntica, por outro lado a variável do momento final é diferente, no primeiro acaba com a mesma dor intensa, no segundo acaba com menor dor já que água é ligeiramente aquecida no final. Nesse sentido, apesar de termos vivido a dor durante mais tempo, os 90 segundos, o nosso cérebro diz-nos que esta experiência foi melhor, pela simples razão de que a variável do fim é melhor.

Podemos associar esta ideia a uma imensidade de outras experiências na nossa vida. Por exemplo ir a um concerto de música, ou ouvir um cd, podemos passar os primeiros 50 minutos de pura alegria e encantamento, mas se nos últimos 10 minutos acontece algo mau, por exemplo um amigo nosso se magoa a dançar, ou então o CD está riscado no final e produz ruído. Apesar de termos vivido praticamente toda a experiência em puro júbilo, a nossa memória acaba por guardar toda aquela experiência como um momento mais negativo que positivo. O mesmo acontece quando se termina um namoro/casamento com alguém, apesar de todos os momentos fantásticos vividos, a nossa memória não larga o modo como terminou, contaminando toda a recordação desse namoro. A memória ignora a duração, e guarda apenas o momento mais intenso, e a fase final. Kahneman e Amos definem esta lógica da nossa memória, como uma ilusão cognitiva, já que a recordação não corresponde exactamente ao que se viveu.

Aprendemos assim que existe um conflito entre o Eu que experimenta, e o Eu que relembra. Somos seres feitos de histórias, e a nossa mente constrói continuamente histórias sobre as nossas experiências. Estas descobertas vêm de algum modo lançar mais alguma luz sobre as razões pelas quais estruturamos as narrativas em modelos que possuem um início, um meio, e um fim. O que interessa de cada história que nos contam, é o modo como começa pelo seu contexto, depois o seu momento alto, o clímax, e finalmente o modo como acaba. Assim não só explicamos a necessidade de linearidade, seguir estes três momentos, mas explicamos ainda melhor a obsessão que temos pelos finais felizes nas histórias.

No caso específico dos jogos, isto explica porque é que aquilo que venho dizendo à tanto tempo faz sentido, isto é, que não precisamos de jogos que durem muito tempo, que se prolonguem no tempo repetindo experiências atrás de experiências. Aquele item que muitas análises de jogos ainda utilizam, a duração do jogo, não tem qualquer relevância para a qualificação da experiência de jogo. Precisamos de jogos que tenham um início contextualizador, e tenham apenas mais duas coisas: um bom pico de intensidade e um bom final. Ou seja, os criadores precisam de compreender que não basta criar uma montanha russa de estímulos e emoções ao longo de horas infinitas, nem que chega criar uma mecânica capaz de deslumbrar, é preciso que o final do jogo seja capaz de encerrar toda a experiência em deleite. Veja-se o caso de “Journey” (2012). Já no caso dos jogadores, e relacionando com outras ideias anteriormente discutidas [2], torna-se muito importante acabar os jogos que começamos. Porque se deixamos de chegar ao fim, e terminamos a nossa relação com o jogo numa parte que não gostámos, inevitavelmente a nossa memória daquele jogo será negativa. No caso de jogos bem desenhados, chegar ao final pode revelar-se uma agradável surpresa, capaz de criar em nós memórias de uma boa experiência, apesar de podermos ter de passar por algumas partes menos interessantes desses jogos.

  • [1] "Thinking, Fast and Slow", (2011), Daniel Kahneman
  • [2] Jogos e controlo emocional (2013), Nelson Zagalo, http://virtual-illusion.blogspot.pt/2013/04/jogos-e-controlo-emocional.html

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