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Moral nos Videojogos

Não são os jogos que tornam as pessoas "más".

Os últimos estudos das neurociências [1] [2] têm trabalhado os mecanismos da moral, do modo como decidimos as nossas ações em face do outro, do modo como reagimos à violência e ao sofrimento do próximo. Nesse sentido caminhamos para a aceitação de que as nossas ações são determinadas, não pela existência de um Mal abstracto que nos incita e consome, mas antes pelas nossas capacidades de empatia.

A empatia está baseada na Teoria da Mente que surge por volta dos 2 a 3 anos e que permite que consigamos ler o que os outros estão a pensar. Ou seja, é um mecanismo mental de "simulação de experiência" que nos permite testar dentro da nossa cabeça, como é que é estar no lugar do outro. A empatia acrescenta a isto a componente de compreensão afectiva e de resposta emocional. Desse modo esta define-se pela habilidade que cada um de nós possui para identificar e compreender o que o outro está a sentir ou a pensar, e pela nossa capacidade de escolher a reação emocional apropriada à situação.

Este é o mesmo mecanismo que permite que um filme, um livro ou um videojogo se ligue emocionalmente ao jogador e provoque sensações de recompensa fortes. Ou seja é a nossa capacidade para entender o que vai na cabeça dos nossos personagens, para procurar perceber como seria viver aquilo na realidade, a experiência vicária, que faz de todo aquele ambiente um teatro gratificante de simulação de ideias, conceitos e emoções.

Violento ou engraçado?

A questão lançada é, o que se passa com aquelas pessoas que possuem baixos níveis de empatia? Os estudos têm demonstrado que num ser humano, mas também nos animais com grandes níveis de socialização, pode abrir caminho à incapacidade de relacionamento social, e consequentemente a atitudes de agressividade, levando a que a sociedade categorize estas pessoas como "más". Assim o que as neurociências nos estão a dizer é que as pessoas não se tornam violentas por serem "más" mas antes por falta de um sistema de empatia. Parecendo de somenos, é algo que nos permite identificar uma causalidade clara e não atirar o problema para o reino do desconhecido.

Mas então se não existe mal, o que é a moral? Para Kant e Descartes a moral era constituída por um código racional de ideias que definiam o que podíamos e não podíamos fazer. No entanto os estudos que nos levaram à definição da empatia, suportam-se numa base de respostas emocionais. Ou seja, quando confrontados com algo imoral, não pensamos que aquilo é errado segundo o código tal, mas é o nosso próprio sistema empático que reage visceralmente e nos impele a responder de acordo com a situação. Ou seja, não matamos outra pessoa porque sabemos que é errado, mas porque o nosso sistema empático nos impede de puxar o gatilho. O ato de matar uma outra pessoa faz disparar o simulador mental que nos coloca automaticamente no lugar do outro, e desse modo atua sobre nós para nos impedir de puxar o gatilho. O sofrimento do outro, e dos seus familiares, passa a ser o nosso, e isso afecta-nos.

E de onde surge esta capacidade de responder emocionalmente desta forma. Uma parte nasce connosco, está pré-programada no nosso cérebro, e por isso existe a ideia de que as pessoas são essencialmente "boas". Mas este sistema inato precisa de ser ativado e alimentado. Os vários estudos realizados com primatas bebés demonstram, que o isolamento total é a primeira causa geradora de deficiências no sistema empático. Daí que os mamíferos nasçam com uma necessidade vital que os instiga a procurar conforto junto do próximo (normalmente a mãe), mais até do que à comida [3]. E é por isso que os maus tratos em criança são tão perigosos, sendo o contrário do afeto, provocam o definhar do sistema empático e impedem que a criança aprenda a compreender o outro.

Claro que existem formas de enganar a nossa empatia, ou moral, que podem ser definidas em função da especificidade das ações. De uma forma genérica podemos dizer que tudo o que contribua para a deslocação da responsabilidade do ato pode ajudar: a deslocação da culpa para o outro (ex. vingança), a deslocação da responsabilidade (ex. soldados em guerra), a desumanização do outro (ex. ditadores ou assassinos em série), ou a deslocação espacial (ex. lançamento de bombas a grande distância). Mesmo assim, quando a moral supostamente é desativada, ou seja quando o processo é racionalmente justificável, a grande maioria de nós continua a ser incapaz de puxar o gatilho. O nosso sistema empático, as nossas emoções, e a nossa visceralidade biológica impedem-nos.

"Quando a moral supostamente é desativada, ou seja quando o processo é racionalmente justificável, a grande maioria de nós continua a ser incapaz de puxar o gatilho."

E a verdade é que isto acontece também quando jogamos, ainda que aqui a nossa emocionalidade seja ativada de forma distinta. Não porque distinguimos o real do ficcional, até porque essa distinção só acontece racionalmente, sendo muito ténue ao nível da emoção. O que chamo aqui para esta distinção são os estudos que distinguem a atitude pessoal ou direta da impessoal ou indireta, e que dizem que é mais fácil aceitar algo que não é causado por contacto direto com o outro. Por exemplo o atropelamento de carro de uma pessoa a alta velocidade, em que praticamente não se identifica a pessoa que foi morta, gerará respostas emocionais muito menos fortes do que ser levado a matar alguém cara a cara com uma faca. Isto acontece porque simplesmente no caso do atropelamento o nosso sistema empático não possui propriamente um objecto de simulação. Claro que isto pode alterar-se dramaticamente quando no dia seguinte se vê a cara da pessoa no jornal, e se aprende mais sobre a sua pessoa (por exemplo sobre a família que deixa sem sustento).

No caso dos videojogos é também isso que acontece grande parte das vezes. Os personagens que "matamos" não possuem um contorno de pessoa suficientemente definidos para nos permitir simular o seu sofrimento. Se pensarmos em títulos badalados sobre a violência, como Grand Theft Auto, facilmente podemos ver que o atropelamento de um personagem é pouco ou nada contextualizado. As animações são vistas à distância, não são apresentados traços visuais definidos dos efeitos dos carros nos corpos, e os gritos das pessoas possuem um acento agudo cómico que funciona em contra-corrente com a tragédia da ação. Ainda assim num estudo recentemente realizado [4] a fruição dos jogadores parece baixar quanto mais aumenta o sentimento de culpa. Mesmo no caso de jogadores que adoram os jogos de ação violenta estes referem a necessidade de algo que os liberte da culpa das suas ações, algo que desloque a sua responsabilidade. Tal como acontece no cinema, preferimos empatizar com o herói.

No fundo um jogador, com um sistema empático saudável, não se torna "mau" porque joga videojogos, ele continua a sentir que é errado, e a esperar que as suas ações quando moralmente erróneas num videojogo sejam justificadas para aliviar a emocionalidade negativa que o seu sistema afectivo gera como resposta.

Notas:

  • [1] Simon Baron-Cohen, (2011), Zero Degrees of Empathy, RSA, UK
  • [2] Jonah Lehrer, (2009), The Moral Mind, in "How We Decide", Mariner Books, USA
  • [3] Harlow, H.F., (1958), The Nature of Love, in American Psychologist, 13, 573-685.
  • [4] Hartmann, T. & Vorderer, P. (2010). It's okay to shoot a character: Moral disengagement in violent video games. Journal of Communication, 60, 94-119

Nelson Zagalo é professor de media interativos na Universidade do Minho e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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