A Morte das Consolas!
Do computador, para a computação distribuída.
Há duas semanas John Carmack, fundador da id Software e criador da série Doom entre outras, veio dizer que "já não vê o PC como a plataforma líder de jogos", e disse-o admitindo que essas declarações iriam deixar "enraivecidos muitas pessoas" [1].
Não fiquei enraivecido, mas não deixei de ficar surpreendido. Durante anos a id Software foi um dos maiores aliados da plataforma PC. As constantes necessidades de mais e mais poder gráfico para o 3d em tempo real, de computação para a IA, aliadas ao facto de ser mais fácil jogar um FPS com teclado e rato do que com um gamepad fizeram destes jogos os maiores trunfos desta plataforma. É no entanto também verdade que com o tempo as consolas adaptaram-se melhor aos FPS, e com a última geração lançada em 2006 (Xbox 360 e PS3) a potência gráfica atingiu níveis virtuosos.
Contudo sinto que percorro o caminho inverso de John Carmack. Tenho defendido desde sempre as consolas, por sentir que eram estas as verdadeiras plataformas lúdicas de sala. No entanto chegado à segunda década deste século, começo a sentir que as consolas têm de algum modo o seu destino traçado. Que trilharam e defenderam muito bem esta arte, mas é chegada a altura de voltarmos ao computador. As razões são muitas para ter mudado de ideias, só estranho que o faça novamente em contraciclo.
Começando pelas alterações ocorridas ao nível tecnológico. Não é apenas o facto de as consolas estarem velhas, estamos a falar de máquinas com cinco anos, o seu processamento gráfico (GPU) é em 2011 metade, no caso da PS3 e Xbox 360, e um quarto na Wii, do existente num computador [2]. É também o facto de as necessidades computacionais das pessoas se terem alterado radicalmente nestes anos, muito impulsionadas pela internet. Hoje qualquer pessoa tem um computador para comunicar com o Skype/MSN ou deixar as suas marcas no Facebook. A vida em sociedade transformou-se, exigindo para a sua mediação nas comunidades a presença do computador. Seja ele um desktop, portátil, netbook, ou tablet. Mais, o próprio telefone deixou de ser um simples aparelho de comunicação de voz, e assumiu o papel de mais uma plataforma de computação.
Ou seja, nos dias que correm, o alicerce que suporta os videojogos, a computação, existe um pouco por todo lado, assumindo as mais variadas formas. Este avanço e democratização das plataformas de computação que foi gerado na base das necessidades de comunicação das comunidades, foi por sua vez estimulado pela cada vez maior largura de banda no acesso à internet, pela diminuição dos custos do acesso, e ainda pela diversificação desse acesso que levou a que hoje se possa aceder à internet em quase qualquer ponto do globo com uma simples pen USB 3G.
Ora a história diz-nos que a existência de uma plataforma de cálculo com acesso gráfico interativo é o suficiente para se começarem a engendrar jogos electrónicos. Deste modo todo este cenário de proliferação de plataformas de computação só poderia conduzir a um aumento e diversificação dos videojogos. E foi isso que efetivamente aconteceu com o aparecimento massivo de Massive Multiplayer Online Games (World of Warcraft, Ever Quest, Guild Wars), de Social Games (Farmville, CityVille, Sims Social, etc), de Mobile Games (Angry Birds, Doodle Jump, Cut the Rope), de Downloadable Games (Bejeweled, Dinner Dash, Plants vs. Zombies), de Flash Free Games (Canabalt, Meat Boy, Wonderputt) entre outros.
Este desenvolvimento massivo de novos jogos em novas plataformas veio criar uma pressão imensa sobre o mercado das consolas, tanto as de sala (PS3, Xbox360, Wii) como as de mão (DS, PSP, 3DS). As questões abordadas da tecnologia e do online deram relevo ao mercado do computador, mas as consolas não saem ilesas sem culpas. Porque os seus jogos continuam a ser muito mais caros, quando comparados com os jogos no iPhone ou Android. Mas e mais importante do que o preço, porque a estrutura que alimenta estas consolas é extremamente fechada em termos de acesso à criação de novos jogos [2]. Nos tempos que vivemos em que todos os dias no mundo inteiro são criados jogos para as várias plataformas, muitos colocados online de forma gratuita e de acesso universal, os requisitos de acesso à publicação pelas três grandes marcas (Sony, Microsoft e Nintendo) continua marcado por um elitismo exacerbado. Mesmo a Apple, conhecida no mundo da computação por casos de censura no acesso à sua App Store, não tem comparação no modo como permite que qualquer criador no planeta possa em pouco tempo ter o seu jogo disponível a toda a comunidade.
Nos dias que correm, o alicerce que suporta os videojogos, a computação, existe um pouco por todo lado, assumindo as mais variadas formas.
É claro que esta ideia de morte das plataformas é velha, na verdade não tivemos a morte do computador, mas foi antes o desktop que deu o lugar ao portátil. O portátil que se converteu em netbook, em tablet e em smartphone. Não tivemos a morte do Flash, mas sim a mudança de direção, deixando para trás os websites, para se concentrar nos jogos. O mais recente player do Flash permite jogar jogos 3d diretamente no browser, criados a partir do engine do Unreal ou do Unity. Ou seja em qualquer plataforma computacional sem preocupações com a existência de drivers corretos para OpenGL ou DirectX, drivers esses que estão por detrás das razões que levaram Carmack a proferir as palavras acima citadas.
Deste modo e como podemos ver o ato de jogar não morre, as tecnologias que o suportam é que se transformam e dão lugar a outras. E é isso que está acontecer no caso das consolas, que passaram de consola a media player e agora terão de se converter em algo muito mais próximo daquilo que é um computador. Aliás os desenvolvimentos em torno do conceito de Cloud Computing, em que as pessoas deixam de necessitar de ter uma máquina super poderosa em casa, bastando-lhe um acesso de banda larga às maquinas das empresas, irá alterar ainda mais todo este cenário. Dentro de poucos anos, será irrelevante ter em casa uma PS3, um Mac, ou um PC, pois o que interessará é o serviço que se adquire online. A nossa casa estará ligada 24/24 a sistemas centrais de computação que distribuem processamento através de redes de fibra, podendo nós em qualquer momento, em qualquer zona da casa, pegar num gamepad, num teclado, num rato, ou simplesmente falar e gesticular em frente de um ecrã para poder jogar o jogo que nos interessa naquele preciso momento.
- [1] Carmack: PC Not The Leading Platform For Games , Mike Rose, October 10, 2011
- [2] Gaming Wars - PC Gaming Versus Console Gaming, Ignite Game Technologies, September 8th, 2011
- [3] Round-Up: The Top 5 Trends Of GDC 2011, Kris Graft March 7, 2011,
Nelson Zagalo é professor de media interativa na Universidade do Minho e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.