God of War - Análise - Uma aventura inesquecível
Aprender a ser um deus.
São pouquíssimas as séries de videojogos que conseguem resistir à passagem do tempo. Aliados à tecnologia, que está sempre em constante evolução, os videojogos têm mais potencial e possibilidades do que qualquer outro tipo de entretenimento. Os valores de produção nunca estiveram tão altos e a fasquia é elevadíssima graças a orçamentos de dezenas ou até centenas de milhões. Todavia, esta constante evolução faz com que jogos antigos pareçam datados, não adequados para os elevados padrões da actualidade, e algumas das vezes até se podem tornar intoleráveis. O que parecia excelente naquela altura, hoje pode ser angustiante. É por isso que, contrariamente aos filmes e livros, os videojogos parecem ter uma espécie de prazo de validade, pelo menos a maioria deles.
Para sobreviver à erosão do tempo e para se manter actual, God of War teve que mudar. Há que dar o devido crédito à Santa Monica Studios por esta decisão arrojada. O estúdio podia simplesmente manter a fórmula dos jogos anteriores da série e, muito provavelmente, teria sucesso, mas ao invés disso, carregou no botão de reset. God of War não descarta os acontecimentos dos anteriores e continua a história de Kratos, mas tudo o resto foi descartado. Há uma nova mitologia, novas armas, novos locais, nova jogabilidade e mecânicas, nova estrutura e muitas surpresas. Para que God of War pudesse renascer como algo melhor, a Santa Monica teve que matar a série como a conhecíamos.
God of War 3 permanece como um dos melhores jogos da PlayStation 3, mas um jogo semelhante na PlayStation 4 não teria o mesmo impacto. Aquela fórmula, que começou na PlayStation 2 e atingiu o pináculo na consola seguinte, já tinha dado tudo e, caso o estúdio tivesse insistido em segui-la, God of War eventualmente acabaria por sucumbir à erosão do tempo. Com este novo capítulo, God of War evoluiu e ficou ainda melhor. Enquanto os anteriores eram, acima de tudo resto, jogos de acção, God of War para a PlayStation 4 está muito mais próximo de um jogo de aventura. Ainda existe acção e muitos combates, mas não faltam oportunidades de exploração e de conhecer pequenas histórias e detalhes da nova mitologia que ficarão injustamente perdidos se seguires "sempre em frente".
Passaram-se dezenas ou centenas de anos (não sabemos ao certo, mas foi tempo o suficiente para que as cinzas coladas ao corpo de Kratos começassem a desaparecer) desde o final de God of War 3 e, depois de chacinar todos os deuses do Monte Olimpo, Kratos vagueou até uma nova terra a norte e instalou-se lá. O amor aconteceu e Kratos foi pai pela segunda vez. Desta união surgiu Atreus, que terá de aprender a ser um deus. O novo God of War é no fundo uma aventura entre pai e filho com valiosas lições para os dois. A violência por violência já não existe, e quando Kratos está disposto a lutar, é para manter o seu filho fora de perigo.
É uma mudança radical no paradigma de God of War. Francamente, Kratos tinha-se tornado numa personagem desagradável, completamente cego pela sua sede de vigança. O novo God of War foi a oportunidade dos estúdios de Santa Monica para redimir a personagem... e que redenção que é! Kratos está mais velho, sábio, controlado e tenta levar uma vida pacata como um homem, não como um deus, enquanto tenta evitar a todos os custos que Atreus cometa os mesmos erros do passado. A aventura desenrola-se lentamente e em todos os momentos nota-se a dedicação que o estúdio colocou no novo jogo durante os últimos cinco anos. É um jogo extremamente bem pensado e que foi buscar inspirações e influências a outros géneros para fortalecer a experiência.
"Quando Cory Barlog mencionava mais 30 horas para chegar ao final, não estava a exagerar. Não sei quantas horas joguei, mas estou seguro que já investi mais tempo do que isso"
O novo God of War é secretamente um RPG. As primeiras duas horas de jogo desenrolam-se de forma semelhante aos anteriores: um jogo linear com pequenos caminhos opcionais que nos levam a cofres com itens e recursos. No entanto, o jogo depois abre-se como uma flor desabrocha na Primavera, revelando uma identidade nunca antes vista num jogo desta série. É neste momento que começamos a aperceber-nos da dimensão massiva de God of War. Quando Cory Barlog mencionava mais 30 horas para chegar ao final, não estava a exagerar. Não sei quantas horas joguei, mas estou seguro que já investi mais tempo do que isso e ainda tenho algumas coisas opcionais para terminar.
O momento de revelação de God of War é quando chegamos a um grande lago que é o ponto de ligação para outras áreas e inclusive outras dimensões. É complicado falar dos sítios que vais visitar sem estragar alguns dos momentos da história, mas se gostas de mitologia nórdica e estás familiarizado com o universo de Thor da Marvel, vais gostar do que o jogo reserva. Tanto Thor como o novo God of War vão beber à mesma fonte, e até o machado de Kratos nos faz lembrar de Mjölnir, o poderoso martelo de Thor (curiosidade: o machado e o martelo foram feitos pela mesma pessoa). O machado é a nova arma principal de Kratos e pode ser evoluído até ao final do jogo, ficando mais poderoso, ganhando mais habilidades e ataques, e no processo ficará visualmente diferente.
A jornada de Kratos e Atreus para levar as cinzas da mãe ao pico mais alto de Midgar não corre tão bem como planeado e pelo meio conhecerão personagens associadas à nova mitologia, umas amigáveis, outras nem por isso. Ao longo desta viagem, vemos a relação de Kratos e Atreus a evoluir aos poucos. Kratos é um durão, mas há momentos em que não consegue esconder o afecto e a preocupação que sente por Atreus. Estes momentos são verdadeiramente especiais e mostram como a Santa Monica conseguiu humanizar Kratos e dar-lhe sentimentos com os quais nos conseguimos relacionar. O deus da guerra continua a ser um bruta-montes em combate e poucos lhe conseguem fazer frente. Neste aspecto, God of War continua fiel às suas origens, mas felizmente, o novo jogo acrescenta coisas que antes não existiam sem arruinar o significado de God of War.
O novo sistema de combate, com uma câmara muito mais próxima de Kratos, anda de mãos dados com os elementos RPG que a Santa Monica adicionou. Para além da árvore de habilidades associada a cada tipo de combate, Kratos pode ser equipado com diferentes peças de armadura que alteram o seu estilo visual (existem armaduras lindíssimas no end-game) e que dão acesso a melhores estatísticas e até a habilidades extras (nem todas têm isto, apenas as mais raras). Aprofundando ainda mais a personalização de Kratos, as peças de armadura mais avançadas e até o Machado têm espaços para colocar Runas, que melhoram ainda mais as estatísticas. Sendo assim, é um jogo muito mais profundo e com mais possibilidades do que os anteriores.
Kratos tem três estilos de combate: um com o machado, outro com as mãos livres e escudo, e por último, um estilo da Fúria de Espartano, um modo de combate enraivecido que causa muito dano mas que está limitado por uma barra de energia que vai enchendo lentamente. O machado pode ser equipado com dois ataques mágicos e ao longo do jogo vais descobrir que existem muitos ataques por escolher, à medida que vais desbloqueado mais e mais. Cada um destes ataques tem uma animação e efeitos diferentes: uns ataques causam mais dano, outros deixam os inimigos atordoados e congelados. Os inimigos que encontramos obrigam-nos a alternar entre os diferentes estilos de combate. Por exemplo, os inimigos de fogo são muito mais vulneráveis aos ataques de gelo, mas existem inimigos de gelo resistentes ao machado de Kratos, pelo que terás de recorrer aos punhos e escudo.
O combate fica ainda mais complexo se equacionarmos Atreus, que é uma grande ajuda para Kratos. Embora nunca chegue ao nível de Kratos em termos de poder, Atreus é uma valiosa ajuda com o seu arco e flecha. Antes de mais, fiquem descansados... em momento algum terão que se preocupar com o bem-estar do filho de Kratos, ele desenrasca-se sozinho. Tal como o seu Pai, Atreus também tem uma árvore de habilidades e armaduras próprias, mas o nível de personalização é menor. No entanto, nas partes mais difíceis do jogo, o jovem deus torna-se essencial. Ele consegue distrair alguns inimigos, avisa-nos de ataques pelas costas e podemos comandá-lo para atirar flechas para o inimigo no nosso campo de visão. O novo sistema de combate é ideal para confrontos de um para um, portanto, quando existem mais inimigos, Atreus está lá para os distrair.
Apesar das mudanças introduzidas e que transformam o combate em algo completamente diferente do que tínhamos antes, a base de God of War continua patente. Os combates são viscerais e, graças à nova câmara aproximada e golpes mais pesados e lentos, cada golpe de Kratos tem um impacto muito maior. Efectivamente, houve uma transição do género hack-and-slash para algo mais próximo do que encontramos em títulos como For Honor e Assassin's Creed, mas com poderes mágicos à mistura. O machado assenta bem em Kratos e a possibilidade de atirar o machado contra um inimigo e poder continuar a lutar com os braços é tão simples e natural mas raramente aplicado nos videojogos.
Com as maiores possibilidades do novo sistema de combate, os controlos ficaram bem mais complexos e o jogo não se resume apenas a fazer combinações de ataques com dois botões. Os gatilhos vieram substituir o quadrado e o triângulo, o esquema de controlos anterior da série, e é possível realizar várias combinações. Quantas mais habilidades desbloqueares na árvore de cada estilo de combate, mais combinações poderás realizar. Não existe um botão para saltar, mas o mundo está construído de uma forma a que não sintas essa necessidade. A câmara comportou-se bem depois de uns ajustes nas definições (optamos por câmara livre, sem foco automático num inimigo), mas existe um tipo de inimigos já perto do final do jogo que são tão ágeis e rápidos que nos podem deixar desamparados e sem saber para que lado rodar a câmara.
"Houve uma transição do género hack-and-slash para algo mais próximo do que encontramos em títulos como For Honor e Assassin's Creed, mas com poderes mágicos à mistura"
Os confrontos bosses épicos com bosses não foram removidos do novo God of War, contudo, a escala é sem dúvida menor. Não existe nada que seja comparável àquele início de God of War 3 em que lutamos contra Poseidon ou o confronto com Chronos. A direcção cinematográfica mantém-se, e apesar de não lutares contra seres de proporções gigantescas, não quer dizer que deixarás de ficar impressionado. Dito isto, uma porção considerável dos bosses que vais encontrar ao longo da história são Trolls que variam em algumas coisas mas acabam por ser todos parecidos. Existem confrontos com outros deuses e identidades da mitologia nórdica reservados para a parte final do jogo e que adicionam mais variedade aos tipos de inimigos que encontrarás.
Em jeito de um RPG, derrotares inimigos e completares as quests equivale a um porção de experiência, no entanto, a experiência ganha não serve para subires o nível de Kratos. A experiência servirá para progredires na árvore das habilidades, mas se quiseres aumentar o nível de Kratos, estarás dependente do nível da tua armadura, armas e das runas. A progressão de níveis é extremamente lenta e, neste momento, depois de já ter terminado quase tudo o que God of War tem para oferecer, estou a nível 8. O teu nível faz diferença no dano que recebes e causas nos adversários. É por isso que completar as diversas quests secundárias é importante. Estas quests não têm o nível de complexidade e história tão desenvolvida como um verdadeiro RPG como The Witcher 3, mas oferecem-te recursos valiosos para melhores Kratos e Atreus.
Conhecer este novo God of War fez-me lembrar especialmente de Darksiders 2, um jogo de uma série inspirada em The Legend of Zelda. Digo isto porque Darksiders 2 também apostou em elementos RPG mas não só, tinha dungeons opcionais, vários puzzles espalhados pelo mundo e a possibilidade de regressar atrás com novas habilidades para aceder a uma área que previamente estava bloqueada. No que diz respeito a estrutura e construção do mundo, God of War é semelhante ao exemplo que dei, mas como seria de esperar de um jogo da geração actual, eleva a fasquia. Os confrontos com os bosses podem ter uma escala menor, mas o resto do mundo é muito maior e mais rico, com deliciosos detalhes do lore prontos a serem descobertos a cada esquina. Mesmo depois de terminares a história, tens arenas e outras actividades desafiantes que dão acesso a armaduras melhores. Não estou a brincar quando digo que este God of War tem uma ligeira faceta de jogos de loot, se bem que a progressão é muito mais directa e o nível de grinding muito menor.
O que significa isto tudo que acabei de escrever? Significa que a Santa Monica Studios criou um jogo completo e equilibrado em que todos os seus elementos estão numa simbiose perfeita. Por outro lado tem uma história memorável que, apesar de envolver mitologia e criaturas míticas, é no fundo um conto sobre a paternidade que dá uma dimensão e profundidade narrativa nunca antes vistas em God of War. Por outro lado, tens o lado genuíno de videojogo, em que podes melhorar as personagens, coleccionar armaduras, completares quests e áreas opcionais para abrires cofres com loot, e arenas com desafios em que podes testar ao máximo as tuas habilidades. É um jogo de apelo universal e que supera tudo aquilo que a Santa Monica Studios fez no passado. É seguramente um dos jogos mais memoráveis da PlayStation 4, e digo isto depois ter já ter jogado títulos como Uncharted 4, Horizon Zero: Dawn e Shadow of The Colossus.
Sendo um jogo first-party, já seria de esperar que God of War explorasse ao máximo o hardware da plataforma, mas acima de tudo, o jogo destaca-se pela imersão máxima. Não existem cortes na câmara (a única excepção é quando perdes) e todos os momentos cinemáticos são gerados em tempo real, desta forma, a armadura de Kratos e todos os outros efeitos visuais personalizáveis não são alterados. A maior atenção ao detalhe está nas personagens. Kratos, Atreus e as outras personagens que vais conhecer tem um aspecto palpável e realista tal foi a atenção dada aos pormenores. A qualidade visual cinematográfica tem, no entanto, um custo, pelo menos na PS4 padrão: os 30 fotogramas por segundo. A framerate praticamente não tem quedas, mas os 60 fotogramas por segundo seriam o ideal num jogo destes. A PS4 Pro tem uma vantagem, que é o modo de desempenho. Neste modo a framerate é desbloqueada, semelhante ao que tínhamos em God of War 3, e há mais fluidez nos combates, mas nunca chega aos 60 frames por segundo. A PS4 Pro tem outro modo que dá primazia à qualidade visual (e existe uma diferença perceptível em comparação com a PS4 Padrão), mas neste caso, a framerate fica bloqueada.
God of War - Análise - Conclusão
Mas voltando à questão inicial, e para chegar a uma conclusão, God of War é um passo importante para a Santa Monica Studios e também para a série, porque conseguiu com sucesso renovar God of War, tornando-o num jogo actual e abrindo as portas para um futuro altamente promissor. É um renascimento a todos os níveis, tanto para Kratos enquanto personagem como para o resto do jogo, que descartou as bases estabelecidas previamente para adoptar elementos que foram encaixados na perfeição na identidade da série. É um God of War muito diferente dos anteriores, mas é precisamente por causa disso que tem tamanho impacto. A Santa Monica Studios não teve medo de arriscar e de sair da zona de conforto. O resultado é uma viagem épica entre pai e filho pela mitologia nórdica cheia de surpresas e estou seguro que todos os fãs da série vão adorar conhecer.