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As Mulheres também Jogam!

Diferenças entre homens e mulheres no ato de jogar.

Clint Hocking, diretor criativo da LucasArts, publicou esta semana um texto sobre a necessidade de atrair mais mulheres para a indústria de desenvolvimento dos videojogos, afim de criar uma cultura criativa que reflita mais a diversidade do mercado, ou seja que chegue aos dois géneros de forma igual.

A questão que Hocking coloca é muito relevante tendo em conta os dados que dispomos sobre o uso dos videojogos em termos de género. A ESA todos os anos lança os seus relatórios muito otimistas em relação ao género, apontando que em 2010, 42% dos jogadores já eram mulheres, e que 67% das casas americanas já possuíam sistemas de videojogos. Optimistas por razões óbvias que se prendem com as lógicas de marketing e de mercado. Ou seja, é verdade que o aumento de interesse por parte do público feminino é real, e que o mercado de jogos casuais, e o aparecimento da Nintendo Wii ajudaram imenso, mas os números finais ainda deixam algo a desejar.

Seguindo um estudo independente publicado na Pediatrics, com uma amostra aleatória de 4028 sujeitos, representativos dos adolescentes dos 14 aos 18 anos nos EUA, podemos desde logo questionar os 67% de casas com sistemas, quando apenas 51.2% (2064) destes adolescentes jogam mais de uma hora por semana.

Jade Raymond da Ubisoft uma das produtoras mais conhecidas dos videojogos.

Mas mais importante que isso, quando analisado por género a amostra total (4028), vemos que no grupo dos rapazes a percentagem que joga, pelo menos 1 hora por semana, é de 76.3%. Já quando analisado no grupo das raparigas, a percentagem que joga mais do que 1 hora/semana é de 29.2%. Em termos comparativos diretos, as raparigas referem um tempo de jogabilidade abaixo das 7 horas/semana, ao passo que os rapazes referem valores acima das 20 horas/semana. Estes números não deixam qualquer margem para dúvidas, o estado atual da demografia dos videojogos continua a ser totalmente dominado pelo género masculino.

Ora este não é de todo um assunto novo, andamos a falar disto há anos, mesmo décadas. Neste tempo todo foram definidas duas abordagens que pretendem explicar a raiz do problema e a partir dela lançar soluções. A primeira é exatamente aquela que Hocking voltou a defender esta semana, que se baseia no facto de a grande maioria dos criadores de videojogos serem homens. Esta realidade condicionaria à partida o tipo de jogos que são feitos. Segundo esta teoria, os homens são apenas capazes de produzir jogos para outros homens, porque imbuídos de um espírito másculo são incapazes de providenciar estímulos às sensibilidades femininas.

A segunda abordagem é mais profunda, de ordem natural, e por isso de mais difícil resolução. Nesta abordagem, pretende-se perceber porque é que o grupo de pessoas que desenvolve jogos, e por conseguinte joga, é constituído maioritariamente por homens. Aliás o próprio Hocking toca no assunto quando refere que a contratação de mais mulheres para a indústria, não é uma questão de estas serem discriminadas na contratação, mas é objetivamente porque existe "uma falta de mulheres a concorrer para a indústria".

Vejamos então aquilo que nos diz Baron-Cohen (2003) a respeito das diferenças entre homens e mulheres. Após vários anos de estudo na área do autismo, Baron-Cohen chegou à conclusão de que as mulheres são tendencialmente mais empáticas, dadas ao relacionamento humano, e os homens mais sistemáticos. Ou seja, os homens têm tendencialmente uma funcionalidade mental mais próxima do autismo, um síndrome que afecta as capacidades de relacionamento social, mas que traz associado consigo grandes capacidades de sistematização.

Lara Croft uma das embaixadoras virtuais.

Baron-Cohen define esta sistematização como uma "motivação para perceber e construir sistemas... sistemas que não são mais do que qualquer coisa governada por regras que especificam relações nas operações de input e output". Ou seja, temos que a mente do homem está mais predisposta ao raciocínio lógico e às relações nas quais as regras são fundamentais, objetivas e muito claras. Aliás, isto vem de encontro à realidade do que acontece na escolha de cursos na Universidade, em que na área da Informática o ratio entre mulheres e homens é de menos de 1 para 10. Nos EUA, a percentagem de mulheres que possui uma licenciatura em Informática é de apenas 11.8% (dados de 2008).

Claramente que os videojogos estão longe de serem apenas uma disciplina da informática, e o facto de envolverem outras disciplinas como as artes e o design fazem com que o ratio ainda assim esteja longe do de Informática. Contudo não deixa de ser uma realidade que os videojogos são em grande medida constituídos por regras. O fundamental num videojogo são as mecânicas de gameplay, que nada mais são que sistemas de regras. Daí que possamos pensar que a clivagem entre homens e mulheres é aqui que ocorre, no modo como são sistematizadas estas regras.

Pensando agora em termos práticos, podemos ver como esta lógica é factual, confrontando dois jogos desenvolvidos por um mesmo homem, e que conseguem ter audiências claramente distintas e bem definidas, falo de SimCity (1989) para o público masculino e The Sims (2000) para o público feminino, ambos desenvolvidos por Will Wright. Ou seja, percebemos que não é uma questão relacionada com quem desenvolve. À semelhança da literatura e do cinema, existem muitos homens que produzem obras que são sucessos junto das mulheres. Mas objetivamente podemos dizer que a diferença assenta no tema, e claro, no sistema de regras.

"Claramente que os videojogos estão longe de serem apenas uma disciplina da informática."

SimCity retrata uma cidade que é apresentada como um sistema de lógica pura, praticamente desprovida de vida, no seu sentido relacional. Em SimCity tudo é quantificado, tudo é regrado por um sistema que precisa de ser compreendido, trabalhado e dominado. A base do jogo passa pela quantificação muito objetiva de inputs e outputs do sistema da cidade, e pela vontade do jogador em dominar e controlar o sistema. Por outro lado The Sims coloca o jogador à prova num ambiente regrado mas menos lógico e mais humano.

O facto de os personagens possuírem uma capacidade de livre-arbítrio faz com que o jogador não possa prever tudo o que pode acontecer, criando assim um sistema menos lógico e mais difuso. Deste modo o jogador/a é levado a concentrar-se mais na análise da criação de relações entre os personagens, ou seja na mimética ou comparação entre o que se passa no jogo e a sua própria realidade. Em suma, enquanto o jogador/a de The Sims retira prazer essencialmente da criação de empatia com os personagens, o jogador/a de SimCity retira da dominação do sistema e jogo.

Saber mais:

Nelson Zagalo é professor de media interativos na Universidade do Minho e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.

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