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Assassin's Creed Unity - Análise

Liberdade ou morte!

As missões confiadas a um assassino não contemplam negociações. De rosto coberto, ágil, sangue frio nas veias e mentalmente preparado, ou morre a executar a missão ou cumpre exactamente o plano como proposto, lançando-se de seguida no banho de multidão até se lhe perder por completo o rasto. Quando em 2008 a Ubisoft lançou o primeiro Assassin's Creed, as propostas do género existentes abarcavam elementos típicos da espionagem, acção, desenvolvimento de tácticas e forte interacção. Mas ao ligar o jogo a eventos históricos e personagens concretas, conciliando ficção com factos históricos relevantes, a Ubisoft acrescentou uma estrutura narrativa capaz de ir bem mais longe do que a mera ficção. A possibilidade de viajar no tempo até capitais antigas, diferentes civilizações, conflitos e momentos cruciais não só colocou a História no centro dos seus jogos como atribuiu um desenvolvimento paralelo à luta entre assassinos e templários.

Os sistemas de combate e actuação furtiva aprofundaram a experiência, enquanto outra marca da série, a navegação por telhados dos edifícios e coberturas, entre saltos e escaladas rápidas, brindava o jogador com um sistema "parkour" adequado a possibilitar fugas nos mais diferentes sentidos, como se o assassino fosse não apenas um valente lutador mas também um ágil trapezista, capaz de andar sobre cordas esticadas e descansar nos bicos dos telhados, engendrando o próximo assassinato.

Entrada em cena.

Durante sete anos a Ubisoft editou sete diferentes jogos de Assassin's Creed da linha principal, recorrendo à mesma fórmula mas sempre com diferentes contextos narrativos e períodos da história. A eventual saturação do modelo, nestas edições anuais, sobretudo nas consolas da geração passada foi no entanto minimizada por constantes ajustes e melhoramentos, adequados a refrescar os conteúdos. Áreas mais abrangentes, como mundos abertos, ganharam uma particular dimensão em Assassin's Creed III e o ano passado em Black Flag essa evolução foi decisiva.

"O esforço na caracterização e produção das personagens trouxe mais realismo e qualidade visual aos protagonistas, quase como personagens saídas de uma obra cinematográfica."

O mais surpreendente é o processo de engenharia e funcionamento de uma produção de grande escala. Com Assassin's Creed Unity (Unity), a Ubisoft Montreal precisou de quatro anos até materializar a incursão na revolução francesa, apresentando Paris no final do século XVIII, numa escala e dimensão notáveis, começando no período imediatamente anterior à revolução, quando se adivinhava a grande revolução que teve como efeito a execução do rei Luís XVI, o fim dos privilégios da nobreza e clero. Um ano depois dos mares e ilhas paradisíacas, a entrada no coração da Europa vem ao encontro de um modelo mais tradicional e familiar para os fãs. Paris do século XVIII é maior que a soma de todas as ilhas de AC: Black Flag e esse é um feito conseguido à custa de uma conjugação, trabalho e coordenação entre dez estúdios da editora.

O assassino oriundo de Versalhes

Assassin's Creed Unity é também o primeiro verdadeiro jogo da série para a nova geração de plataformas, algo que não deixou de constituir um desafio e uma oportunidade para o estúdio alcançar novos objectivos que anteriormente não estavam tão facilmente à sua mercê. Os produtores dedicaram-se afincadamente a criar uma experiência que pudesse dar ao jogador uma maior margem de escolha e liberdade quanto aos objectivos e sobretudo na escalada até aos nove assassinatos, as missões nucleares que constituem o eixo principal da narrativa. Lembramos que uma das limitações dos primeiros jogos da série era precisamente a estrutura linear das missões. Posteriormente foram introduzidas melhorias, mas desta vez é mais evidente a necessidade de equilíbrio entre o grau de evolução da personagem e a dificuldade das missões, só possível através da aquisição de equipamento como armas, espadas ou armas e habilidades de combate. Mas os objectivos, diferentes missões, opcionais e tesouros são tantos e dispersos nesta Paris explosiva, com o povo nas ruas a clamar liberdade, que combinados com um estilo de actuação (mais combate, mais actuação furtiva) escolhido pelo jogador, desfazem quase por completo a tendência para a linearidade da campanha. Aliás, uma visita ao mapa com todas as missões disponíveis é quase como uma tela televisiva em formigueiro.

Os efeitos de luz e sombras estão muito destacados.

A vila de Versalhes e o seu colossal palácio são a porta de entrada na véspera da revolução. Aliás, é naquela vila, próxima de Paris e retiro da família real, que em 1768 nasce Arno Victor Dorian, a personagem central, filho de um assassino e adoptado por um templário depois da morte do seu pai. Criado num ambiente da corte, em convívios no Palácio e com uma educação excepcional para uma criança francesa, a sua amizade com a esbelta, atraente e templária Elise de LaSerre, acaba por promover o contacto com os assassinos, após a tempestuosa tomada da Bastilha, uma vez que fora feito recluso depois de ser culpado pela morte do pai adoptivo. Elise não esconde a amargura pela decisão, transmitida por escrito numa missiva. A narrativa progride nesta intersecção de planos históricos e ficcionais.

O esforço na caracterização e produção das personagens trouxe mais realismo e qualidade visual aos protagonistas, quase como personagens saídas de uma obra cinematográfica. Os movimentos corporais primam pelo realismo, sobretudo Arno, quando entra em combate. Igualmente relevantes as transições entre cena cinematográfica e jogo em tempo real, num efeito que consegue dar sequência e seguimento às cenas, sem rupturas abruptas e sem grandes desequilíbrios entre jogabilidade em tempo real e "cut-scenes", proporcionando uma experiência mais fluida.

Ultrapassada a fase de treino, uma das investidas cruciais, que dará a Arno grandes revelações, ocorre precisamente na torre de Notre-Dame, um monumento cultural e simbólico da cidade da luz, edificada magistralmente, emergindo à distância, na Ile de lá Cité. Rasgada pelo rio Sena, são icónicas e históricas as pontes: Marie, Notre-Dame, Rouse, entre muitas outras. A precipitação dos acontecimentos revolucionários, em paralelo com o desenvolvimento do mistério à volta do assassinato do seu padrasto, ocasiona esta constante deambulação pela cidade, não faltando até uma passagem pela Paris da "belle époque" no fim do século XIX, por ocasião da Expo e inauguração da emblemática torre Eifel, segmento que também produz uma passagem alucinante pela rede de metro da cidade. As simulações de diferentes ambientes e épocas em Paris acontecem noutros momentos, causando uma surpresa pela mudança súbita.

Vertente cooperativa.

Multidões eufóricas em revolta

É fascinante descobrir tão grande cidade, fruto de um trabalho árduo mas muito profícuo, se considerarmos a descrição assertiva de bairros parisienses como La Bièvre, Le Quartier Latin, Ventre de Paris, Le Marais, Le Louvre, Les Invalides, entre outros. Os monumentos mais emblemáticos e erguidos sobressaem no horizonte e daquele mar de telhados como estruturas de inesgotável beleza arquitectónica. Envolta numa ténue neblina ou sob um sol crepuscular, é nessas zonas cimeiras que se respira ar puro e se retemperam forças, enquanto que junto ao solo e por calçadas saturadas de gente a revolução estala. Gritos, clamores, choros, ouvem-se diante de estrados altos onde se erguem guilhotinas compridíssimas, propostas por um parisiense Guillotin como método preferível de execução ao machado, que muitas vezes deixava o carrasco na indesejada tarefa de golpear mais uma ou duas vezes o pescoço até conseguir separar a cabeça do tronco. Há cabeças a rolar, corpos sob tapetes e lençóis ensanguentados em cima de carroças. A morte espreita ao virar da esquina. É um espectro constante. As multidões eufóricas aguardam pelos prisioneiros. A violência psicológica é por vezes significativa, não gratuita e seguramente reveladora da severidade e forma como se procedeu à limpeza dos privilégios da nobreza.

"É fascinante descobrir tão grande cidade, fruto de um trabalho árduo mas muito profícuo."

Nunca em algum jogo da série as multidões ocuparam tantos espaços e foram tão vastas, provocando visíveis dificuldades de movimentação ao protagonista quando avança por aquele aglomerado de corpos em êxtase. Limitadas a cinco mil pessoas, a interacção com estes aglomerados só adquire mais sentido de oportunidade nas situações de fuga ou tentativa de neutralizar qualquer rasto deixado aos adversários alarmados pela nossa presença. Graficamente, a fluidez não é posta em causa, mesmo sendo visíveis algumas quebras de "frame rate". Nada porém, que afecte gravemente a experiência de jogo. Mesmo assim e tendo a personagem a passo, em determinados pontos há partes do cenário, objectos e figurantes que surgem do nada. Estes efeitos "pop in" são mais regulares e nalgumas aproximações é notória alguma falta de texturas. Um polimento adicional seguramente reduziria estes efeitos menos indesejáveis, claramente uma decorrência da dimensão da cidade.

Os telhados de Paris como pistas

A movimentação a pé até determinado objectivo, ponto de interesse, missão, arca etc, é só uma possibilidade. Entre escalar fachadas e saltar telhados ou deambular entre uma população nas ruas, rapidamente optamos pelo método mais rápido e eficaz. A escalada e transição entre os telhados foi substancialmente melhorada. A personagem continua a fazer os movimentos necessários para se manter firme e não cair indesejadamente, mas com outra desenvoltura. Com dois botões ligados às trajectórias ascendentes e descendentes, correr nos telhados e saltar entre eles implica um bom enquadramento, e já não está dependente de pontos específicos a seguir, como se apenas existisse uma via. Qualquer fachada serve para escalar, qualquer telhado pode ser percorrido. Mas também é um processo rotineiro, por vezes em demasia a mesma solução para alcançar a próxima missão e assim sucessivamente. Multipliquem estas passagens pelas dezenas de missões e locais a visitar e temos um certo regresso ao ponto de partida. Teria sido mais interessante encontrar outras vias criativas de deslocação. A simplicidade de controlos favorece a entrada em prédios através de janelas abertas nos pisos superiores. Nem todos os edifícios podem ser explorados e atravessados de uma ponta à outra, possibilitando mais alguma exploração, pois muitos objectivos e pontos relevantes localizados no mapa situam-se em pontos intermédios dos prédios. Unity dá particular ênfase à evolução da personagem. As primeiras missões colocadas sobre a mesa não oferecem grande dificuldade. De nível um e para principiantes, são executadas nos moldes normais. A partir de um certo ponto próximo do centro onde se encontra resguardada a presa, perspectiva-se uma estratégia e acção. A "eagle vision" confere a habitual ajuda para detectar os adversários e patrulhas. Depois, com mais ou menos acção, mais ou menos actuação furtiva e à sombra dos edifícios, avançamos até ao alvo final.

Notre-Dame em fundo.

Café Theatre

Cumprindo missões, são atribuídas recompensas. Não apenas monetárias mas através dos preciosos "sync points", que atribuem à personagem diferentes habilidades: combate corporal (mestre de espadas, etc), saúde (suportar mais danos), actuação furtiva (disfarce e golpe fatal contra dois inimigos) e combate à distância (saco de dinheiro para atrair multidões). O cumprimentos de objectivos secundários permite amealhar ainda mais recompensas, contribuindo para uma melhoria do nível da personagem, cujo limite é o nível 30, o assassino plenipotenciário. Arriscar uma missão de nível de dificuldade três ou quatro com a personagem somente numa ou duas estrelas em cinco de é uma entrave série ao sucesso da demanda. Daí que o jogador seja convidado a realizar as mais diversas missões, explorando a cidade antes de seguir para as missões livremente, ganhando recompensas monetárias que poderá substituir por melhor equipamento, nomeadamente armas longas, armas pesadas, pistolas, espingardas (mosquetes).

Uma das novidades em Unity é o modo cooperativo até 4 jogadores ligados em rede. Juntando três pessoas ao jogo, certas missões podem ser completadas em modo cooperativo, ou simplesmente podem optar por partilhar o jogo e, no lugar das missões, explorar a cidade livremente, partindo em busca dos cofres e recolhendo uma série de itens, completando aquele bloco que reune todo o tipo de actividades que não cabem na história (arcas, artefactos, cockades, viewpoints, renovações da casa de Arno), nas missões de Paris e no segmento do jogo em modo cooperativo. Os "boosts" e as habilidades cooperativas integram uma secção relativa ao desenvolvimento da personagem.

O Café Theatre revela a sua utilidade no que toca à obtenção de fundos e participação em missões exclusivas. Regularmente o jogador é chamado a recolher a soma financeira, podendo com ela modificar a sua moradia, ampliando-a onde todas as conquistas se reúnem. Os enigmas Nostradamos proporcionam também mais uma deslocação alternativa ao ventre de Paris, num enredo paralelo de crimes e mistério, numa garantia sólida de conteúdo suplementar.

Depois de dois episódios da série que se afastaram do modelo original, AC Unity é um jogo mais familiar, uma espécie de regresso a casa. Paris, como a grande cidade da luz e epicentro marcante, especialmente nesse período revolucionário e de forte convulsão social e política do final do século XVIII francês, impressiona. O "salto-de-fé" nesta cidade densa, populosa e recriada ao mais pequeno detalhe, com os seus monumentos e bairros históricos e diferentes facções em conflito é significativo, com mecânicas melhoradas. No entanto, uma cidade maior não significa necessariamente um jogo melhor. Falta mais algum desenvolvimento e alargamento dos sistemas de jogo. Superados os desafios, na memória de quem percorreu o jogo perdurará a reconstrução de um dos períodos mais revolucionários da história francesa e europeia.

8 / 10

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