Atomic Heart - Ambição desmedida
"Avante Camarada".
Atomic Heart esteve em desenvolvimento por mais de cinco anos, desde 2017. Proveniente das paragens gélidas da Rússia, pelas mãos da Mundfish (é o seu primeiro título), há aqui muitas correspondências a outros trabalhos. Até há quem o apelide de um sucessor espiritual da saga BioShock, mas não vamos tão longe, pelo menos eu não me atrevo a caminhar por esse raciocínio. É certo que as amostras dão a entender essa linha de desenvolvimento, pelo aspeto visual e até pela particular abordagem a uma linha temporal imaginária de um mundo com rumos alternativos.
União Soviética alternativa
Estas abordagens não são novas e outros títulos já fizeram o mesmo no passado. Falo claro de eventos alternativos solidificados nos ideais soviéticos, da antiga URSS. É o que nos traz este Atomic Heart. Retrata uma linha alternativa de acontecimentos onde a União Soviética é uma potência mundial com consideráveis avanços tecnológicos. As filosofias e ideais comunistas estão no seu expoente máximo, é uma representação quase perfeita de uma ideologia onde todos vivem felizes e em harmonia, abraçando ao mesmo tempo os avanços tecnológicos alcançados, para tornar a vida dos humanos mais prazerosa e quase intemporal. Estes avanços científicos levaram a grandes descobertas no campo de redes de inteligência artificial e robótica.
Decorre o ano de 1955, e vive-se numa realidade alternativa da história mundial. Tudo decorre na Facility 3826, um centro de investigação científica muito avançado e responsável pelos avanços tecnológicos que a população soviética usufrui. Somos Sergei Nechaev, muitas vezes tratado por P-3, um militar com problemas de estabilidade mental. O início é muito singelo e colado a um trabalho muito específico, assemelha em certa medida a BioShock Infinite - não logo desde o seu início, mas a ideias foram certamente retiradas do mesmo.
Não está apenas colado ao título da 2K Games, ramificações de Fallout são também totalmente evidentes. A construção artística é muito inspirada nos títulos referidos, desde os cenários, apresentação de elementos ligados às mecânicas da jogabilidade, e até temos a presença de um boneco que ilustra em vídeo algumas das proezas que podemos fazer. A arte visual, elementos sonoros, não são a meu ver totalmente originais, mas não é uma critica negativa. Se essas inspirações conduzirem a uma produção de alto nível teremos então um trabalho que merece ser homenageado.
A introdução dos elementos é pausada, levamos o nosso tempo a inteiramo-nos da realidade aqui retratada. Conduzidos de forma linear e formatada para criar no jogador a sensação de que está numa linha da história totalmente alternativa, a Mundfish fez um belo trabalho nesse aspeto. Fiquei convencido da sociedade retratada, todos vivem em perfeita harmonia com os avanços tecnológicos e seus camaradas.
A insurreição das máquinas
P-3 (Sergei Nechaev) é chamado pelo responsável máximo do complexo Facility 3826, Sechenov. É aqui que se dá a reviravolta e o mote para toda esta jornada. Repentinamente estamos envolvidos numa luta contra as máquinas que foram criadas para servir a humanidade, mais concretamente os camaradas soviéticos. A inteligência artificial de todo o complexo entra em colapso, a rede combate agora os humanos, aniquilando-os quase na sua totalidade. P-3 terá que investigar o que se está a passar, sempre às ordens de Sechenov.
As primeiras horas são decorridas em zonas interiores, P-3 vai descobrindo lentamente os contornos da insurreição das máquinas, sempre acompanhado por uma luva falante que lhe confere determinados poderes e habilidades. Adicionalmente, o nosso arsenal é inicialmente complementado por uma arma de combate corpo-a-corpo, e mais tarde com armas de fogo e de elementos, como eletricidade e gelo.
O primeiro impacto com os elementos da jogabilidade não é positivo. Tudo o que está ligado a maiores exigências de movimentação é um tanto estranho, que piora assim que começamos a executar os primeiros ataques. Primeiramente temos a forma como nos deslocamos, que a meu ver é demasiado lenta, apenas acelerada ao desbloquear determinadas habilidades. Depois temos elementos como saltar e trepar. São um tanto desajeitados e sem a agilidade a condizer com o personagem em questão, que é um militar em excelente forma e muito atlético. A parte do combate corpo-a-corpo é também problemática, a dificuldade em atingir os inimigos é muito evidente.
Armas e habilidades aliciantes
Posteriormente chega-se ao momento de apetrechar o arsenal, com armas mais apelativas, diversas e para todos os gostos. Devo dizer que gostei bastante da oferta, são várias as que nos oferecem e dão ao jogador a liberdade necessária para que seja ele a escolher a forma como quer enfrentar os inimigos e desafios. Temos umas convencionais, como a simples pistola, uma caçadeira e até uma versão adaptada da emblemática Kalash soviética. Para além destas mais convencionais, temos umas de energia elétrica que recarregam com o tempo (não necessitam de munição específica). A complementar este arsenal mais agressivo temos armas de combate corpo-a-corpo (melee), são várias e possuem visuais bem extravagantes.
O armamento é de facto interessante e um ponto forte. Temos a liberdade de escolher como abordar os desafios através de uma oferta vasta e multifacetada. Todas elas podem ser melhoradas, com recursos que vamos apanhando, conferindo ainda mais poder de ataque. Para complementar este arsenal, a nosso personagem tem acesso a habilidades, que inicialmente são mínimas. Vamos adquirindo novas e até melhorar as que já temos. Aqui Atomic Heart também se revelou uma boa surpresa, são variadíssimas as possibilidades na componente das habilidades, como energia aumentada, mais velocidade de deslocação, passando pela capacidade de telecinesia (levitar objetos), escudos, jatos de polímero, capacidade de congelamento, choque elétrico, entre outros. Uma versatilidade de opções que dá grande profundidade ao gameplay.
As habilidades quando combinadas com as armas, dão um toque especial às mecânicas da jogabilidade. Inicialmente não estava convencido e tive alguma dificuldade em adaptar-me à forma como nos movimentamos, demasiado desajeitada e por vezes até rudimentar. Mas confesso que após conseguir ultrapassar essa barreira, consegui momentos deliciosos. Penso que a introdução tardia de determinados elementos cativantes, desde as habilidades até às armas mais apetecíveis, podem ter comprometido o desfrutar das primeiras horas.
Muitos problemas e erros primários
Devo referir que a crescente melhoria da minha ideia não me fez esquecer as questões mais negativas. Há problemas a corrigir, como a impossibilidade de mapear botões. Certas habilidades estão colocadas em botões nada confortáveis, como o choque elétrico que foi colocado no triângulo (joguei na PlayStation 5). É complicado fazer mira e ao mesmo tempo ter de deslocar o polegar para o botão triangulo, retirar o dedo do analógico direito impede de seguir o alvo com precisão. Este foi apenas um exemplo, mas temos mais funções que preferia colocar noutros botões. É urgente dar a opção de mapear todos os botões no jogo.
As problemáticas não estão apenas ligadas aos elementos da jogabilidade, temos erros e questões que gritam por correção. Os menus estão com vários erros. Primeiro, não são intuitivos, dificultam a tarefa do jogador,. Depois temos coisas estranhas, como artigos que aparecem com uma cor e depois quando os utilizamos têm um visual totalmente diferente. Ainda no menu, está demasiado confuso, com zonas onde os artigos não possuem descrição, erros na criação de artigos (se não os temos no inventário este diz que ainda não os contruímos), armas que desaparecem, outras que não podem ser utilizadas mesmo quando as possuímos, botões que deixam de funcionar, e mais... são mesmo muitas as problemáticas com menus.
São problemas como os referidos acima que retiraram muito do brilhantismo que estava a ser alcançado por Atomic Heart. De que serve uma montra apetecível de possibilidades jogáveis, num universo criado através de uma linha alternativa da história, quando estas estão alicerçadas em erros primários que deveriam ter sido detetados e corrigidos durante o processo de desenvolvimento.
Exterior desprovido de interesse e qualidade
Já dito na parte inicial da análise, a ação tem início em zonas interiores. São apelativas, com um bom trabalho visual e uma sonoridade bem aceitável. Os desafios propostos são vários, confrontos inevitáveis com as máquinas (robôs), que são variadíssimas e todas elas com desafios diferentes. A variedade é uma mais valia para este trabalho, com uns mais “humanos” e outros mais “máquinas”. Pelo meio, temos criaturas que não sou uma coisa nem outra, mais desafiantes e exigentes em termos de jogabilidade. Uma nota também para a quantidade colossal de puzzles e portas para se desbloquear.
As secções interiores são a parte mais interessante em Atomic Heart, já o exterior é dececionante, com zonas desprovidas de interesse. Temos edifícios a visitar e encontramos muito loot (necessitamos de recursos para criar tudo). Somos obrigados a ir para o exterior, conduzidos pela narrativa. Essas zonas estão totalmente dominadas pelos robôs que mataram quase todos os humanos. Sinceramente, se a nossa estadia fosse sempre no interior não me queixava.
Boss fights um tanto ridículas
Outra doença de que padece é a da repetição de ações. A enormidade de puzzles que temos de desvendar é de loucos, só ultrapassada pela excessiva quantidade de portas que temos de abrir através de mecanismos próprios. A repetição destas duas tarefas deixou-me aborrecido e até desesperado quando não descobria o que tinha de fazer. Por falar em não saber o que fazer, há bugs na indicação para onde temos de ir, temos sempre essa sinalização, mas por vezes ocorre um erro e desaparece. Tive mais que uma vez de carregar uma gravação anterior para que voltar a saber para onde tinha de ir.
Este é o segundo título em toda minha vida de jogador que me apeteceu estrangular quem nos acompanhava. Neste caso a nossa luva. O primeiro foi em Biomutant. Fui criticado minha análise, mas até os produtores diminuíram as conversas após os pedidos da comunidade. Aqui a luva não para de falar, é completamente impressionante o exagero das conversas com a nosso personagem. Chega a ser hilariante quando estamos a meio de um diálogo e aparecem inimigos pela frente. Em combate e a conversar com a luva ao mesmo tempo, como se nada estivesse a acontecer.
Os bosses são vários, mas nenhum empolgante. São genéricos e muito fáceis. Não entendo o porquê da sua existência, não senti que havia necessidade e tive vergonha alheia em alguns deles. Aparentam ter sido concebidos por uma criança. Não falo do seu aspeto visual, mas sim dos desafios que apresentam ao jogador, executam ataques repetidos e de dificuldade baixa, com fases nada desafiantes.
Ideias interessentes mal concretizadas
Atomic Heart é um conjunto de ideias interessentes, umas bem concretizadas e outras que precisavam de mais cozedura. Há questões estranhas que mais parecem vir de um jogo em desenvolvimento, como os erros referidos acima e algumas ausências inexplicáveis, como a falta de mapa nas secções interiores. Até pensei que estava a ver mal, mas não existe mesmo mapa para essas zonas, apesar de apetrechados com uma luva falante capaz de mil e uma coisas.
A evolução da narrativa é outra coisa que me dececionou. Inicialmente temos a sensação de que estamos perante algo empolgante, que envolve um acontecimento de grande escala, mas rapidamente se averigua uma direção para coisas corriqueiras e sem grande interesse. O desapontamento começou a tomar conta do meu interior. Não é aquela reta final em crescente, uma caminhada para um epilogo imprevisível que nos deixasse agarrados até ao fim. Eu estava mesmo mortinho para que o jogo acabasse, toda aquela caminhada para chegar aqui? Foi assim que me senti. Um final nada satisfatório, uma batalha final tremendamente desinteressante, como todos os bosses, diga-se de passagem.
Visualmente estamos perante uma apresentação com duas caras. Sim, é isso mesmo. Nos interiores as coisas são muito apelativas, com secções de elevadíssima qualidade gráfica. Já no exterior a deceção é imediata, excetuando a parte inicial. O exterior é um tanto desprovido da excelência encontrada no interior, há uma diminuição evidente na qualidade da construção dos cenários e até da arte em geral, parece que não encaixa bem e que não faz parte do mesmo trabalho. Também temos um problema grave com o brilho. No interior temos que aumentá-lo, mas quando aparecem as secções exteriores temos que o baixar. Nunca me tinha acontecido antes, é a primeira vez que tenho de alterar o brilho conforme a zona onde estou.
Compreende-se que este é o primeiro jogo da Mundfish, mas há falta de ligação nos ritmos de jogo e de como as coisas evoluem. A narrativa torna-se uma nota de rodapé e até me afastou do que eu realmente ali estava a fazer. Apesar de alguns bons momentos e de coisas bem apresentadas, algumas vindas de outros jogos referidos ao longo da análise, não consegue sobressair quando tudo é somado. Há muita reciclagem em toda esta jornada, demasiados puzzles e demasiadas vezes a fazer sempre o mesmo. Poderia salvar-se pela narrativa, mas a reviravolta final não tem o impacto necessário. Segue uma linha carente de importância, um confronto global passa para algo tão pequeno e limitado a uma singularidade.
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