Criadores e críticos
Das obras e da discussão à volta destas.
Teorias, teorias e mais teorias temos muitas para ajudar definir o trabalho criativo que algumas pessoas vão criando, seja no mundo da pintura, da escultura, cinema ou videojogos. Todas elas têm em comum um único objetivo, traduzir, transpondo para o simples meio de texto, o sentido das obras. Definem-se algumas categorias que se desenvolvem a partir de diferentes campos do conhecimento - a filosofia, a antropologia, a psicologia, a sociologia, a história, a economia, entre outras - e com isso assume-se o lugar de analista. Assume-se que porque estamos munidos de ferramentas de diferentes disciplinas podemos desconstruir a simbologia de uma obra de arte, que podemos simplesmente traduzir uma imagem, um som, ou uma mecânica numa frase de texto. A somar a tudo isto, as teorias vêm muitas vezes pejadas de elementos que dizem respeito às vidas pessoais dos criadores, servindo-se destes como suporte argumentativo das interpretações.
Tudo isto vem a propósito dos ataques que tenho visto ao documentário "Indie Game: The Movie" a propósito das obras e autores escolhidos para o filme, como por exemplo Edmund McMillen com "Super Meat Boy". Os ataques menos duros simplesmente dizem que estes projetos não são representativos da diversidade de jogos independentes existentes, e que existiam muitos mais jogos e criadores que ficaram de fora. Outros sentem-se incomodados com a forma como os criadores lidaram com a saída dos jogos a sua atenção aos números, mails, tweets, a sua ânsia por reconhecimento. Os ataques mais vis simplesmente desprezam os criadores atribuindo-lhes rótulos de debilidades, definindo-os como meras prima-donas pretensiosas em busca de sucesso e em nada se diferenciando dos produtores de blockbusters da grande indústria.
É no entanto muito interessante perceber que grande parte destes ataques não vieram de fora da arte, mas de dentro, de alguns consumidores e de alguns alegados criadores transformados em críticos. E se percebemos que uma parte deste discurso destrutivo é natural, faz parte da natureza humana, a web tem sido óptima no sentido de abrir portas à catarse de maledicência humana. Já é menos compreensível que algum desse discurso seja emanado por quem estuda ou pretende estudar o meio, por quem o analisa e se diz seu defensor. Para este grupo de intelectuais, só Jonathan Blow pode salvar a arte dos videojogos da sua auto-extinção.
Uma boa leitura desta abordagem pode ser vista num artigo publicado na conceituada revista americana, The Atlantic [1], há algum tempo atrás. Neste texto tudo aquilo que a arte dos videojogos criou "ao longo dos últimos 30 anos" é jogado para debaixo do tapete, apontando os videojogos como incapazes de desenvolver algo dito artístico ou "intelectualmente sofisticado". Mas o mais interessante em todo o artigo é perceber como tanto o jornalista Taylor Clark como Jonathan Blow se debatem tentando diferenciar o trabalho de Blow, ao ponto de entrarem em contradições. Por um lado atacam os jogos por se limitarem à forma de jogo e com isso se condicionarem a estimular a mecanização sem profundidade temática, por outro atacam os jogos por se aproximarem demasiado do cinema e que com isso esquecem o facto de que possuem uma especificidade formal única.
Blow diz-nos ainda que o problema dos jogos é tentarem ser como "Bad Boys 2" de Micheal Bay, e não como "Citizen Kane" de Orson Welles. Clark e Blow dizem que o essencial está na capacidade para lidar com assuntos, segundo eles, complexos e profundos, sobre a condição humana. Mas parecem esquecer que o elogio a "Citizen Kane" feito pela crítica cinematográfica não ocorre por este ter uma mensagem profunda, mas pelo modo como este revolucionou o uso de certas técnicas cinematográficas. Mas à frente é o próprio Blow que diz que apesar de o cinema e a literatura serem comparáveis na arte de contar histórias, só a literatura consegue trabalhar o lado introspectivo do ser humano, e que o cinema nisso é muito mau. Pudera, se os exemplos artísticos com que trabalha são todos provenientes da mesma escola, ou seja de Hollywood, o alcance estético fica muito reduzido. E se Jonathan Blow visse uns filmes de Ingmar Bergman ou de Andrei Tarkovsky?
Dito isto e voltando ao início deste texto, não é porque Edmund McMillen é mais extrovertido, tem aspecto de rufia e não cita autores de literatura clássica que é menos criativo na arte dos videojogos que Jonathan Blow. Um criador mede-se pelas suas obras, e McMillen não precisa de elaborar tiradas filosóficas sobre a vida para se afirmar. Se por um lado tem dedicado bastante do seu esforço criativo na exploração e aperfeiçoamento de meras mecânicas de jogo em trabalhos como "Gish" ou "Super Meat Boy", nem por isso tem descurado o tratamento de ideias e temas mais profundos em obras como "Aether" ou "Coil". Aliás podemos notar que a sua última obra, "The Binding of Isaac", evoluiu no sentido de juntar as duas abordagens, o aperfeiçoamento de mecânicas clássicas de jogo em função de ideias complexas, criando assim experiências distintas e marcantes nos receptores. Mais interessante é que em poucos anos conseguiu criar toda uma estilística própria, uma marca autoral, e isso revela muito sobre a qualidade do seu trabalho.
Tudo isto para percebermos que mais importante do que aquilo que os criadores fazem, pensam e dizem, mais importante do que aquilo que os críticos analisam e julgam, são as obras. São os livros, os filmes, os videojogos. Perceber que mais importante do que as análises rebuscadas sobre aquilo que cada obra expressa, é aquilo que cada obra faz sentir, faz experienciar nos seus receptores. Perceber que cada meio é único, que possui especificidades formais não compatíveis na tradução para outros meios, nomeadamente para crítica escrita ou para a mera descrição oral.
- [1] The Most Dangerous Gamer, Taylor Clark, Maio 2012,