Daymare 1998 - Review - Descida ao H.A.D.E.S.
Tributo a Resident Evil 2.
É indiscutível a preponderância da série Resident Evil na criação e desenvolvimento do género survival horror. Depois do jogo inaugural, lançado para a PlayStation, em 1996, pela mão da Capcom e que teve em Shinji Mikami o criador-mor que haveria de se embrenhar depois noutros projectos de não inferior qualidade, o panorama dos jogos de terror e suspense não parou de crescer. Com mais ou menos nuances, mais ou menos momentos de acção em lugar de puzzles e jogos de luz e sombra, multiplicaram-se os momentos de terror e angustia vividos de comando na mão, a tal ponto que ainda hoje somos bafejados com remasterizações que elevam a qualidade dos jogos que marcaram essa época.
Assim acontece com as remasterizações de Resident Evil 2 e 3, publicadas no espaço de um ano, ambas experiências que vieram fortalecer o quadro de origem e adquirem moldura e substância na vaga actual de sistemas de entretenimento. O apelo desmesurado dos originais contagiou gerações e produziu mesmo sólida influência sobre muitos jovens que haveriam de encontrar nos videojogos um ofício e um salário.
É o que acontece precisamente com Daymare 1998, jogo produzido por uma modesta equipa - a italiana Invader Studios -, situada na cidade Olevano Romano e constituída por não mais de 10 profissionais residentes e alguns dos melhores fãs de RE. Os outros produtores que contribuíram para o seu desenvolvimento colaboram por fora e estão distribuídos pelas mais diversas localizações do globo. Vale a pena uma breve excursão à origem deste survival que tem na sua génese uma espécie de tributo ao clássico RE 2, da Capcom. Por ocasião de 2015, muitos destes profissionais exploravam um remake do jogo da editora japonesa, desejosos por trazerem à luz do dia um projecto pessoal e querido.
Só que a Capcom avançou das intenções à prática desse mesmo remake, o que redundou na inviabilidade deste interessante trabalho. Não demovidos das suas intenções, pelo menos em mostrar à comunidade a sua paixão pelo género survival, adiantaram-se na criação de Daymare 1998, aproveitando o embalo e muitas ideias experimentadas; os puzzles, a câmara de ombro, o ambiente 3D sombrio e opressivo, a sensação de isolamento, escassas munições, etc. Ou seja, tudo matéria prima que Mikami e Kamiya inventaram na produção de RE e RE2. Ao mesmo tempo, estreitando o contacto com a Capcom japonesa, especialmente com o director de RE3 remake (Kazuhiro Aoyama), os italianos receberam uma espécie de aval e supervisão.
Isto posto, vale a pena salientar não estarmos perante um daqueles jogos oriundos de grandes editoras ou que tiveram na sua origem um gordo orçamento. Aliás, só quase um ano após o lançamento no PC é que o jogo encosta às consolas. Este é um jogo oriundo de uma pequena produtora independente, que faz o percurso difícil e sinuoso dos jogos que não contam com tanto marketing e exposição entre os media mas que nem por isso desmerecem uma abordagem liminar.
Um regresso às origens do survival horror
Como já verificaram, estamos perante um jogo que assinala um regresso às origens do survival horror. Mas ainda que seja abertamente inspirado em Resident Evil 2 e ostente um modelo algo similar, como atestam os seus produtores, não esperem jogar o exacto jogo da Capcom. Há em Daymare 1998 suficiente espaço de improviso e criação dentro das fronteiras delimitadas pelo estúdio japonês. Não equivale a fugir a lugares habituais como gestão do equipamento e munições, puzzles, adversários hediondos e temíveis, e uma produção visual apta a assustar ou pelo menos criar momentos desconfortáveis para o jogador, com um sistema de comandos algo tosco. Mas é o que a equipa de produção faz com essas ferramentas, num quadro de maior liberdade que acaba por fazer a diferença, justo dizê-lo tanto para o bem como para o mal.
Determinante a manutenção da perspectiva na terceira pessoa, ao ombro da personagem, pedra-ângular na construção Resident Evil, com toda a manutenção dos aspectos relativos aos movimentos, de ampla liberdade, ao ponto de incluir o "sprint" ou passo acelerado. A verdade é que joga-se bastante bem. A tendência para nos lembrarmos do jogo da Capcom pode ser teimosamente exasperante aqui e acolá, talvez porque o jogo não nos dá outra abordagem, aprisionando-nos ao conceito original, mas é evidente a base e nela reside toda a fórmula; pensamos na gestão do equipamento, com limite ao que podemos transportar, até à hipótese de gerirmos da melhor forma, com base em ferramentas e processos de fabrico, a assistência médica e o equipamento bélico. O sistema de combate põe à prova isso mesmo, o sentido de gestão e estratégia, pondo peso e aposta em cada bala, especialmente nas armas dotadas de maior poder de fogo com as quais é mais fácil atingir com sucesso as vulnerabilidade dos zombies.
"Estamos perante um jogo que assinala um regresso às origens do survival horror"
É uma cápsula de viagem no tempo, com os seus níveis lineares, câmaras escuras e sombrias e toda uma optimização do ambiente sonoro, apto a causar relaxamento antes da libertação do mal, em pedacinhos contemporizados, aptos a surpreender o jogador mais incauto. Não se pode dizer que estejamos perante um portentoso trabalho em termos técnicos ou artísticos, ficando aí bastante aquém do primeiro RE e até de RE4. Por exemplo, os jogos de luzes, embora presentes as claridades em alternância, existem demasiadas camadas de cinzento, conferindo um aspecto nebuloso e azulado que liberta e deixa antever os objectos. Mergulhado numa escuridão mais opressiva e dotada de melhores contrastes concerteza daria mais profundidade à exploração daquela estação de pesquisa tombada na desgraça.
Intervenção do H.A.D.E.S.
Não há grandes mudanças no que toca ao argumento dentro do que é aguardado num jogo de survival. Num laboratório de pesquisa onde a actividade descambou à custa da libertação de um gás letal, contaminando dezenas de humanos e levando muitos outros a sofrerem mutações, somos chamados - enquanto equipa de salvação que desce ao Hades, a proceder a uma espécie de limpeza e erradicação do mal, abrindo caminho por entre salas, espaços largos e corredores entornados. Só que vamos fazendo a nossa actividade de forma gradual e não de uma assentada. A gestão do avanço é criteriosa e obedece à resolução de puzzles e a uma indispensável leitura de provas e outros elementos com os quais acabamos por interagir, e nisto parece que revistamos RE. Interruptores, alavancas e botões são algumas coisas que nos restam, devendo ser aproveitadas da melhor forma.
A diferença neste argumento, porventura o ponto mais arrojado mas que acaba por produzir um efeito de aumento do tempo de jogo, para lá de se tornar inconsequente embora com ligações entre si, é a intervenção de três diferentes personagens. Não receiem encontrar o desastre de RE6, de todo. Mas embora prossigam nos mesmos espaços e cenários, cada personagem abre espaço a diferentes câmaras, o que é essencial para terem uma visão completa do laboratório e daquela cidade sujeita ao maior pesadelo. Já o guião e muitos diálogos tendem a soçobrar. Desde situações que são referenciadas como carne para canhão, até aos diálogos cheesy e domínio incipiente de algumas personagens, a narrativa parece um mal comum nos survival.
É sobretudo como tributo à série RE, em especial o segundo episódio, publicado em 1998 pela Capcom, que Daymare melhor funciona. Não são apenas as referências e o ambiente, é toda a construção, da arte e conceito survival, até aos comandos e sistema de combate. Mas enquanto a Capcom injectou vitalidade e desbravou caminho, este trabalho da Invader é muito mais reflexo, espelho e testemunho de quem viveu essa época por dentro e por isso funciona mais como apoio ou dimensão lateral, à afirmação de um pilar ou novo enxerto nos caminhos abertos pela Capcom. Não há nenhum problema nisso, é até um tributo bastante generoso e revelador de um empenho em lograr uma experiência consistente e satisfatória.
Prós: | Contras: |
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