Donos do Universo: Revelação é inesperado e polémico
Se esperavas uma espécie de remake HD na forma de uma sequela, é melhor ajustar as expectativas.
Para os apaixonados pela animação dos anos 80 e 90 (especialmente aqueles que começaram a assistir a desenhos animados antes da animação japonesa sequer chegar a estes lados), existem diversos nomes dessa era que são verdadeiramente sagrados. As Tartarugas Ninja, os Thundercats e He-Man são a minha trindade sagrada e praticamente todos os dias penso no impacto que tiveram na minha imaginação. Quando foi anunciado que He-Man iria regressa numa sequela chamada "Donos do Universo: Revelação" através da Netflix, fiquei mais do que entusiasmado com a possibilidade de voltar a ver todos aqueles personagens em novas aventuras, especialmente mais do confronto entre o protagonista titular e Skeletor, o malvado feiticeiro.
Pensada como uma forma de promover bonecos para crianças, a série de animação conseguiu conquistar um estatuto lendário entre os adeptos da animação e antes de Dragon Ball se tornar num fenómeno mundial de popularidade e abrir caminho para o resto da indústria japonesa no ocidente, eram séries como "He-Man e os Donos do Universo" que conquistavam as audiências mais jovens. Longos anos depois, temos a Netflix a ressuscitar a obra da Mattel com a ajuda do escritor e realizador Kevin Smith, recrutado para produzir uma sequela capaz de homenagear o material original e te fazer sentir naquele estado de maravilha quando vias os episódios originais.
Tendo em conta que é importante abordar alguns acontecimentos para falar devidamente desta parte inicial da primeira temporada de Donos do Universo: Revelação, vou primeiro começar por falar de pontos mais gerais e quando abordar pontos mais sensíveis, farei questão de o avisar antecipadamente. Existem momentos em que o efeito surpresa é verdadeiramente importante, mas desde já aviso, se estás à espera de mais do mesmo, uma espécie de versão HD da série original, não é isso que terás aqui. Donos do Universo: Revelação é inesperado e inequivocamente polémico, o que me deixa a pensar que Smith desenhou estes acontecimentos para alcançar um tom propositadamente chocante para os fãs. Conceitos divergentes do termo "homenagem".
Os excelentes níveis de produção, tanto a nível visual como sonoro
A Netflix recrutou Kevin Smith para criar uma sequela para He-Man e os Donos do Universo para atar pontas soltas, encerrar linhas narrativas e mostrar o desfecho dos principais personagens. Esse é o principal propósito desta Donos do Universo: Revelação, responder a perguntas pendentes e mostrar o que aconteceu com estes heróis, exatamente logo após o final da série da década de 80. A Netflix decidiu mais uma vez colaborar com a Powerhouse Animation Studios, conhecida por Castlevania e Blood of Zeus, para a produção de Donos do Universo e como seria de esperar, isto assegura que a qualidade visual e as animações são de alta qualidade.
"O estúdio de Castlevania foi novamente a aposta da Netflix e a qualidade dos visuais e animações é de grande qualidade, num tom fiel à série original."
A qualidade dos desenhos, seja dos personagens ou dos cenários, as animações e os efeitos, sem esquecer o uso da cor para tornar as cenas e ambientes altamente impressionantes, ajudam a tornar a série altamente apelativa. Existem diversos momentos de combate em que as animações são suaves e cumprem, enquanto alguns momentos relacionados com habilidades especiais conseguem igualmente impressionar. A Powerhouse volta a entregar um resultado digno de vários elogios e os fãs da série original certamente agradecem. A qualidade visual ajuda imenso a manter-te preso aos acontecimentos imaginados por Kevin Smith, que com a ajuda da sua equipa de produtores e editores trouxe de volta Eternia.
Outro elemento de qualidade inquestionável é a componente sonora. A banda sonora a cargo de Bear McCreary é de excelente efeito, acrescentando grandiosidade, impacto e emoção às cenas consoante necessário, enquanto atores como Chris Wood (He-Man), Mark Hamill (Skeletor), Sarah Michelle Gellar (Teela), Liam Cunningham (Man-At-Arms) e Lena Headey (Evil-Lyn), entre outros, tornam toda a produção muito mais convincente e cativante. Sem surpresas, Hamill como Skeletor é um dos pontos altos da série e as suas cenas revelam um talento impressionante.
Se estás à procura de assistir a uma série de animação de grande qualidade visual e sonora, Donos do Universo: Revelação da Netflix cumpre nesses requisitos, em muitos momentos consegue um tom fantástico. No entanto, o que diz respeito ao argumento e à abordagem de sequela tomada por Kevin Smith, isso já dependerá do quão aberta é a tua mente, se tens ou não um afeto especial pelo material original e se és capaz de enfrentar um produto que de antemão já se sabia ser polémico enquanto tentas ir mais além e procurar entender o que os responsáveis parecem pretender. Para isso, terei de abordar spoilers e poderás querer ficar por aqui.
Uma sequela polémica
O primeiro destes 5 episódios iniciais, a primeira metade da primeira temporada, começa com um tom clássico, um reencontro com os heróis tal como ficaram nos anos 80 e após uma série de empolgantes eventos, ficas perante a inevitabilidade deste universo, He-Man a enfrentar Skeletor pelo futuro de Eternia. Parece que estás a assistir a um episódio dos anos 80 em formato HD e a reviver memórias de outra era. No entanto, o plano de Smith não é esse, a sua intenção é ir além da unidimensionalidade de uma animação criada apenas para vender bonecos, na qual existem os heróis e os maus que praticam o mal porque os bons precisam de combater alguém. Smith sabe que a base de fãs de He-Man é agora adulta e com poder de encaixe para ir além desses conceitos tão simples e provavelmente sentiu que não queriam um repetir da série dos anos 80, mas agora com cores mais bonitas e a 4K. Smith tentou criar uma sequela que decididamente choca com as expectativas da maioria.
Estes spoilers que vou referir são absolutamente essenciais para comentar a série e fica novamente o aviso, especialmente porque é importante perceber de onde vem toda a polémica à qual esta Donos do Universo: Revelação ficará inevitavelmente associada. Na sua missão de ir além do convencional para uma sequela de uma animação de tom unidimensional, Smith já tinha avisado que irias assistir a diversas mortes ao longo dos episódios e não estava a brincar. Morrem diversas personagens ao longo destes episódios, muitas delas em acontecimentos que atam as tais pontas soltas deixadas desde os anos 80 e com a intenção de os aprofundar ou explicar a essência de cada um. No entanto, apesar de ter promovido fortemente Donos do Universo: Revelação com He-Man, o seu nome não está no título da série e isso já devia ser a maior das pistas. O protagonista principal morre no primeiro episódio após um novo e importantíssimo confronto com Skeletor, que também perece.
Isto significa que os dois principais personagens que figuram intensamente na memória dos fãs desde os anos 80 morrem no primeiro episódio. É uma espécie de tentativa de desconstruir He-Man e mostrar que existe mais aqui do que apenas esses dois nomes. As repercussões deste duelo fatal fragmentam os nossos heróis e até os vilões, ambos perdem o seu líder e tu ficas sem as mais icónicas figuras de He-Man. Este é o primeiro choque que Smith dá e torna-se estranho imaginar como ele tenta agradar aos fãs com isto, mas a verdade é que indo além do choque, a ausência de Skeletor e He-Man permitem-lhe explorar o restante elenco e criar novas camadas, acrescentar profundidade aos restantes heróis e vilões, conseguindo ainda através dos olhares secundários mostrar o estatuto mítico de He-Man.
No entanto, a morte de He-Man e a destruição da Espada do Poder faz com que Eternia esteja perto da sua destruição, a magia está a desaparecer e em breve o Castelo de Grayskull perderá o seu poder. Caberá a Teela, a nova Man-at-Arms aceitar a missão de liderar Orko, Evil-Lyn, Beast Man, Roboto e Andra encontrar as duas metades fragmentadas da Espada do Poder para que a magia possa regressar a Eternia e salvar o mundo. Uma das partes está escondida no inferno e outra no céu. Remover Skeletor e He-Man da equação permitiu a Kevin Smith explorar linhas narrativas que podiam facilmente ser feitas de outra forma, mas não teriam o mesmo impacto. O desaparecer de duas figuras míticas deixa um enorme vazio a preencher por outras personagens, mas será muito difícil para um fã digerir isto.
Sim, a presença de He-Man nesta primeira metade é mínima e poderá ser visto como um engano para muitos, especialmente os que não gostarem do conceito de explorar o mito de Eternia e He-Man através do restante elenco. Teela conquista o lugar de personagem principal durante a esmagadora maioria do tempo e confesso que gostei do tom inesperado escolhido para a sequela, mas é fácil entender o porquê de ser tão polémico ver que o regresso de He-Man tem muito pouco de He-Man. Explorar o que aconteceu naquele mundo após os episódios dos anos 80 e imaginar Eternia sem He-Man foi uma ideia altamente perigosa e Smith convenceu a Netflix a seguir em frente. A segunda metade da primeira temporada poderá voltar ao tom clássico, mas o que temos agora é uma série de chocantes mortes, um tom mais adulto como consequência disso e cenas de grande impacto que aprofundam outros personagens.