É preciso consertar os videojogos?
Do espacial ao social, da ação à introspeção.
Este ano muitos de nós dissemos que os videojogos tinham atingido o estado de maturidade, que tinham conseguido desvelar técnicas e apresentar modelos acabados de videojogos capazes de expressar ideias complexas e profundas ao mesmo nível de outras formas de arte [1]. Estas ideias não deixaram de encontrar alguma resistência na comunidade, por um lado os que acreditam que há muito que os videojogos já o conseguiam fazer, nomeadamente no campo do RPG. Por outro, os que continuam a acreditar que o meio ainda está longe de ter uma linguagem própria suficientemente capaz de ombrear com as outras artes. Interessa-me aqui hoje discutir este último ponto, nomeadamente no que toca ao artigo sobre Chris Crawford, “30 anos Depois, um Homem ainda anda a Tentar Consertar os Videojogos” [2].
Crawford é um dos mais reputados nomes da indústria de videojogos, começou a desenhar jogos para a Atari em 1980, foi o fundador da Game Developers Conference (GDC) em 1988, e entretanto tem escrito vários livros sobre o design de videojogos. Há mais de uma década que se dedica exclusivamente ao desenvolvimento de um modelo de storytelling interactivo para os videojogos, porque continua a duvidar da capacidade técnica, em termos de linguagem, dos videojogos para contar histórias. Porquê?
Crawford acha que os videojogos continuam demasiado fixados numa lógica espacial. Passamos o tempo às voltas no espaço proporcionado por níveis à procura do item que nos falta ou do inimigo que temos de eliminar, escondendo-nos aqui e ali, ultrapassando portas e salas, para chegar ao ponto final. Desta forma ficamos limitados em termos das ações que podemos realizar (“verbos” é como lhe chama Crawford). Ou seja, na grande maioria dos jogos os verbos disponíveis para os jogadores são: “andar”, “correr”, “saltar”, “virar”, “atirar”, “apanhar”, e pouco mais. Para além de serem poucos, estão todos relacionados com as nossas possíveis ações sobre o espaço.
Crawford considera assim que precisamos de evoluir este paradigma espacial, dizendo que “as afirmações mais importantes que os seres humanos fazem uns aos outros são: 'eu gosto de ti' e 'eu não gosto de ti'. Temos milhões de formas de dizer isto e utilizamo-las todos os dias. Os verbos que nós precisamos de aprender nos jogos têm tudo a ver com lógica social, não lógica espacial”. Tendo em conta a impossibilidade de contar histórias sem lógica social, a formula encontrada pelos videojogos para o fazer tem sido por meio das já gastas “cutscenes”. Sintetizando, Crawford assume que os videojogos ainda não sabem como contar histórias.
Tenho de começar por dizer que respeito imenso Crawford, e fico imensamente agradecido por todo o esforço que tem realizado na conquista do storytelling interactivo. Também que o caminho por si apontado, da expansão dos verbos para um nível da ordem do social, me parece correto e o futuro dos videojogos narrativos. Mas não concordo que diga que estamos ainda no tempo da mera lógica espacial, em que não se consegue extrair lógica social dos videojogos atuais e que diga que os designers de jogos, da grande indústria ou independentes, nada tenham feito para dar resposta a estas angústias.
Evocar “Gone Home” (2013) é mais do que suficiente para demonstrar que a lógica do pensamento de Crawford está completamente ultrapassada. “Gone Home” constrói toda a sua lógica narrativa no espaço, mas fá-lo de forma a transcender as lógicas mecânicas deste. Ou seja, se em termos de movimento estamos limitados ao “andar”, “abrir” e “apanhar”, estes não deixam de ser acompanhados por três outros verbos - “ver”, “ler” e “ouvir” - que transformam por completo a interpretação social que fazemos dos verbos de movimento. A voz em off que “ouvimos”, as cartas que “lemos”, e a atmosfera que “vemos” criam na nossa cabeça toda uma teia de relacionamentos entre seres humanos. Relacionamentos que põem em evidência todo um conjunto de verbos introspectivos, como o “apaixonar” e o “amar”, que contribuem para o contar de uma história, que de forma alguma se limitam a verbos externos de ação.
Crawford confunde nesta sua acepção da narrativa, o contar de histórias com a externalização de ações, daí a sua busca por verbos de ação. Isto surge de uma tradição de contar histórias à lá Hollywood que assume que tudo no cinema tem de ser mostrado, nada pode ser contado. O problema é que se isto funciona muito bem para ações externas, mas é muito difícil de colocar em prática para ações introspectivas. Ou seja, eu posso mostrar o caminho que conduziu uma pessoa a apaixonar-se pela outra, mas não posso colocar no ecrã o que sente alguém a apaixonar-se. A forma como o cinema ou a literatura o faz, é por meio de metáforas que criam a tal sensação de se estar a mostrar o que a pessoa está a sentir, quando na verdade não passam de colagens de ideias visuais que servem para ilustrar algo não visível, e menos ainda acionável.
Um exemplo deste ano neste sentido é “Brothers: A Tale of Two Sons” (2013) que consegue quase no final do jogo colocar nas ações que temos de fazer o sentimento implícito da falta de um irmão. Mas não é através do desenho da ação, não é pelo verbo do que fazemos (neste caso “nadar”) que se transmite o sentimento e a relação social, é sim através da importância metafórica que esse verbo adquire no final do jogo.
Para fechar, não deixa de ser verdade aquilo que Crawford diz sobre os problemas das histórias nos videojogos, mas é-o porque Crawford delimita a sua análise aos FPS mainstream. Se alargar o seu espectro de análise, e for além da crosta de Hollywood que paira sobre os videojogos, verá que já não é um problema de linguagem do meio, mas um problema de públicos. Mais, se se dedicar a jogos em modo terceira-pessoa, verá como ampliam drasticamente as possibilidades comunicativas dos videojogos em termos narrativos.
- [1] “A forma de expressão mais relevante do século XXI”, Eurogamer Portugal, 20.12.2013
- [2] “30 Years Later, One Man Is Still Trying To Fix Video Games”, Kotaku, 27.12.2013