Earthbound - Virtual Console Wii U - análise
A louca aventura de (S)Nes.
A grande ironia de Earthbound é que apesar de ser um jogo globalmente aclamado, fora do Japão só conseguiu chegar às 150 mil unidades vendidas. Que equivale somente aos Estados Unidos, pois a viagem até à Europa nunca se fez depois do lançamento japonês em 1994 e americano no ano seguinte. Contudo, 150 mil unidades é pouco, muito pouco para um mercado como o americano, que proporcionava, à época, receitas na ordem dos milhões, especialmente para algumas séries da Nintendo. Apesar de integrar o popular género role play (nipónico) - jrpg - ficava assim demonstrada como neste género as histórias de fantasia de cariz medieval, de anjos e demónios eram as mais tradicionais e as melhor aceites pelo mercado. Ainda hoje poucos são os jogos de role play (nipónicos) que fogem à estrutura clássica, o que não deixa de ser pretexto para histórias adoradas pelos fãs.
Earthbound foi uma iniciativa arrojada à época, ainda que suportasse as mecânicas mais tradicionais. A SNES entrava para a sua volta final, num mercado que se preparava para receber as novas plataformas que haveriam de marcar a passagem do 2D para o 3D, especialmente por via da N64. Para Shigesato Itoi e Satoru Iwata (então a trabalhar como produtor no Hal Laboratory) que emprestou ajuda providencial à equipa Ape, esta era a derradeira oportunidade para chegar ao mercado com um título que trazia consigo uma enorme carga humorística, uma revisão em jeito satírico à cultura americana, sem perder de vista uma paródia ao próprio género que integrava. Apesar do fracasso comercial fora de portas, Earthbound não precisou de muito tempo até se tornar num jogo de culto em fóruns onde conhecedores gabavam as suas qualidades, enquanto era também um fenómeno de licitações deveras avultadas no ebay, onde cada cartucho completo, com caixa e manuais, atingia valores insuportáveis para os bolsos do comum dos jogadores.
Sem deixar conceder a vantagem resultante da posse desses elementos, a Nintendo fez alguma justiça e prestou homenagem a uma das suas mais valiosas - e recomendadas - obras do passado. Ao colocar Earthbound disponível na Virtual Console da Wii U, os europeus dispõem, finalmente, da oportunidade para desfrutar deste magnífico e surpreendente clássico. Apesar das largas falanges de apoio no Japão e nos Estados Unidos, muitos jogadores, sobretudo os mais novos, desconhecem a história e todo o culto que gravita em torno deste peculiar jrpg. No more ebay, portanto.
Earthbound mantém as mecânicas mais tradicionais de outros jogos de role play então populares, como Final Fantasy V e VI, sendo que a maior diferença em termos de combate é mesmo a deslocação dos combates aleatórios para os encontros forçados, uma vez que os inimigos encontram-se visíveis no cenário e só indo ao encontro deles é que temos combate. Assim, o jogador pode evitar alguns confrontos, embora não seja desejável que o faça. Atendendo à dificuldade de alguns combates, especialmente contra os bosses, será útil subir o máximo possível de nível de modo a maximizar as propriedades da party. Earthbound é um jogo difícil, hardcore sobre esse prisma. Apesar de existirem pontos de gravação através dos telefones instalados que permitem a Ness ligar para o pai e gravar a posição, muitos combates podem correr mal, obrigando a regressar ao último ponto de gravação. Isso já não é tão grave, se pensarmos que a Wii U permite um ponto de gravação do jogo - ou suspensão (para continuar mais tarde -, daí que seja conveniente gravar a progressão antes de uma boss fight ou à entrada para uma caverna).
Os combates desenrolam-se por turnos e aqui o jogador pode recorrer a uma série de opções tradicionais, nomeadamente; executar um ataque directo através de objectos que possua como um yo-yo, um bastão de baseball, uma fisga ou então recorrer ao poder da mente - à psi - para concentrar golpes especialmente severos nos inimigos. Pode ainda recorre à defesa, podendo ter equipado um boné a fim de melhorar o atributo ou vestir alguma peça de roupa. Outra alternativa passa por fugir aos adversários ou entrar em combate em modo automático. Em termos de desenvolvimento de combate, a diferença é que este ocorre quase em forma de diálogo, com o inimigo ao centro e na parte inferior os dados das nossas personagens com os indicadores de HP (saúde) e PP (psi points), que constituem o núcleo de vida das personagens, a revelarem a inclinação do combate.
Embora seja um sistema bastante tradicional e de uma engrenagem muito sequencial (bem típica dos jrpg's), é a partir da história que nos sentimos fascinados por esta tremenda aventura. A nossa personagem é Ness, mas também podemos dar-lhe outro nome, a ele e aos nossos futuros amigos de viagem; uma party extensa que abrange também um canídeo falante. A narrativa aponta para uma invasão alienígena ao nosso planeta, após a queda de um estranho meteorito numa colina ao pé da habitação de Ness. A primeira parte do jogo constitui assim uma exploração ao monte onde caiu a imensa pedra escaldante vinda do espaço Mas não tarda até que Ness saia de casa para a sua aventura (Link, anyone?), enquanto a mãe fica em casa a "fabricar explicações" para justificar a ausência do filho à escola. O pai - sempre fora em trabalho - é o banqueiro de serviço, mas a voz dos conselhos, sempre à distancia de uma chamada telefónica. No fim do dia a conta de Ness recebe mais dígitos de dólares, divisa indispensável para a aquisição de objectos. O mais engraçado é que Ness não luta com espadas nem com escudos. Ataca com um bastão de baseball ou com um yo-yo que comprou numa loja de conveniência e defende-se usando um boné.
As lojas de alimentação proporcionam o combustível necessário para restabelecer a saúde quando necessário; hambúrgueres, batatas fritas, sumos, bolachas, doces, tudo pode ser comprado. Ness só tem que levantar dinheiro numa ATM se lhe faltar moeda para pagamento, caixa multibanco que pode ser encontrada no lobby de um Hotel (onde pode passar o dia e ler os jornais no dia seguinte - um NPC até afirma que o rapaz deve ser rico para conseguir passar uma noite num Hotel que cobra 50 dólares), ou numa loja de conveniência. Assim se vê como este é um jogo contemporâneo e actual. A ideia de Itoi foi captar ao máximo os símbolos da cultura popular americana, mas também dar um relevo contemporâneo à aventura. E isto fica tão mais interessante, porque aquilo que se faz normalmente noutros jogos para progredir, como acontece nos jogos de fantasia, nos quais se deve entrar numa caverna e chegar junto de um mago, em Earthbound tudo é próximo de uma realidade que ainda faz parte dos nossos dias. Para se movimentar mais depressa Ness até pode alugar uma bicicleta, que faz sons de campaínha e tudo. Que estouro.
É isso e a banda de blues que actua preferencialmente num espaço de actuações ao centro da cidade. A narrativa de Earthbound está repleta de segmentos insólitos, mas funcionam sobretudo como uma imensa paródia à cultura americana e ao género jrpg. Isso fica bem patente quando dialogamos com os npc's. Aliás, para prosseguirem na história terão que dialogar com quase toda a gente que encontram, pois só assim conseguem ficar a saber para onde ir, o que dá azo a uma aventura menos linear. Felizmente, as conversas raramente se fazem sem humor e sem uma gargalhada lograda por quem segura o GamePad. Desde comentários jocosos sobre a personagem, a fatalidades, acontecimentos - verdades que são ditas -, até à estranha personagem que amiúde desce dos céus para captar um momento fotográfico (sobre um tema musical épico) e que leva Ness a esboçar um sorriso antes da lente fechar, tudo isto constitui um arrasador nonsense humorístico que torna tão fascinante cada nova descoberta, cada encontro com os rúfias ao fundo do bairro que ocuparam a arcade, controlados pelo chefe Frank e pelo seu tanque.
E tendo o MiiVerse à distancia de um clique, são quase incontáveis as publicações em poucos minutos, provenientes de muitos jogadores que agora estão a descobrir Earthbound pela primeira vez e a jogá-lo, apesar de já saberem da sua referência enquanto jogo de culto. Desde imagens de diálogos, a descobertas e autênticas pérolas de diálogo, quase tudo isso é destacado em imagens comentadas.
A sonoridade e a banda sonora causam grande impacto. Desde sonoridades blues, ao punk e outros, especialmente em combates contra certos adversários, impressiona sobretudo pela grande diversidade e avanço tecnológico, quase sempre muito bem apontada e descritiva dos momentos. Por exemplo, ao acordar num Hotel e a descer para o lobbie, podemos escutar os assobios matinais dos pássaros. Em termos gráficos estamos diante de um jogo muito colorido e apelativo visualmente, sobretudo devido aos seus imensos detalhes e grandes subtilezas, especialmente nas cidades, onde estão bem reproduzidas as casas com os seus jardins, os sinais de trânsito, os automóveis. Em termos de longevidade, Earthbound leva muito longe, por diferentes paragens e muitos cenários onde existe uma miríade de surpresas.
Não se deixem confundir pela interface algo datada (mas incrivelmente acessível e intuitiva) e por uma mecânica de combate obsoleta, sobretudo diante do mais avançado e actual dos jogos de role play. Earthbound vale sobretudo pelos segmentos de grande apontamento humorístico, reveladores de um sentido expressivo inexistente nos jogos de hoje. Pena que seja um título isolado, que não tenha recebido a devida e justa continuidade, num género que continua a valorizar argumentos de fantasia sempre com grandes proximidades entre si. Com a paródia e a criatividade que traz para o ecrã do GamePad da Wii U ou do televisor. Se, por um misterioso acaso não soubéssemos nada sobre ele, até julgávamos tratar-se de uma produção actual indie. E já passaram quase vinte anos.