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Fallout 76 - Análise - Refazendo a América

Wasteland partilhada.

Transformado numa experiência multiplayer online, Fallout 76 abdica do conceito narrativo e dilui algumas das melhores características.

Algumas das minhas melhores experiências no âmbito dos jogo role play foram-me proporcionadas pela Bethesda. Da actual e anterior geração de consolas guardo as incontáveis horas que passei nas missões principais e secundárias em The Elder Scrolls IV: Oblivion (2006) e depois na sequela em The Elder Scrolls V: Skyrim (2011). A estes dois majestosos jogos acrescem os não menos magníficos Fallout 3 (2008) e Fallout 4 (2015), com a edição Fallout: New Vegas (2010) pelo meio. O primeiro Fallout criado pela Bethesda foi um jogo especial, uma vez que marcou uma viragem fortíssima na série, uma entrada na "wasteland" em 3D, depois do original em 2D e de perspectiva isométrica, criado e editado pela Interplay no ano 1997.

Com uma forte experiência e um vasto quadro de lançamentos no género role play, não restam dúvidas sobre a qualidade dos trabalhos da Bethesda, que para além dos vastos mundos abertos que oferece e dos desafios em crescendo assentes em histórias marcantes, polvilhadas de momentos inesquecíveis, incentiva os jogadores a explorarem o mundo, cada recanto, cada casa, cada vila, cada ponto de uma wasteland pródiga em surpresas, encontrando npc's que contam um pouco da sua história e tornam mais útil um lugar sob as apertadas malhas do pós-apocalipse.

Mas a mesma produtora que nos dá estes jogos repletos de aventuras e descidas ao "centro da terra", também é a mesma que não nos livra de aborrecer com "bugs" e nos levar a passar por algumas inconsistências em termos técnicos e performances ao nível do desempenho, que ora se devem à falta de polimento, ora são resultado de uma intenção em chegar mais além com uma tecnologia manifestamente insuficiente para a visão avançada. A produtora assume esses erros e até produz humor pelas situações inusitadas, o que demonstra capacidade para se superar e encarar de frente a situação. No interesse por oferecer um novo jogo e diferente no universo Fallout, a Bethesda tomou a iniciativa de criar Fallout 76 como o primeiro jogo da série a funcionar como "multiplayer online". Uma decisão que não deixou de suscitar controvérsia por ocasião do seu anúncio, em Maio deste ano.

A passagem do tempo e a variabilidade de condições em Fallout não é surpresa, mas ainda encontramos momentos como este, óptimos para uma fotografia através do editor de imagem.

A reconstrução da América, ou de Appalachia, o mundo do jogo inspirado em West Virginia, através de estranhos ligados ao jogo por via online, convidando os amigos da nossa lista igualmente ligados. O prospecto parece interessante: conciliar a natureza de um mundo aberto - o maior da série Fallout - com uma recuperação levada a cabo por um grupo de jogadores - os sobreviventes -, partilhando a mesma experiência e concluíndo "quests" enquanto outros jogadores se dispersam pelo mapa, convocados para outros desafios quando não imersos nas suas missões.

O fascínio de Fallout 76 passa pelo mérito das anteriores produções, pela amplitude das áreas e pelo que encontramos no caminho até ao próximo ponto assinalado no mapa, onde tem lugar um evento. Chegados ao local, a realidade encarrega-se de ser ainda mais avassaladora e surpreendente, revelando um tanto que o mapa não permite contemplar. Uma cidade pode ser maior do que se imagina e até em torno de uma serração podem existir anexos aos quais importa deitar uma observação minuciosa. Nesses redutos onde podemos obter valiosos itens e coisas de utilidade imediata, estão quase sempre alojados temíveis inimigos, compenetrados num exercício de patrulha, farejando a oportunidade para uma mordida ou um disparo, o que torna quase inevitável o combate.

Desde Fallout 3 que nos habituamos ao registo quase solitário das missões principais e secundárias. Não pode ser de outra forma num mundo pós apocalíptico, onde a interacção e a sensação de vida é escassa por oposição aos mundos densos e povoados de um Elder Scrolls. A destruição, o abandono e o isolamento ganham raízes naquele universo. Os sobreviventes procuram o mesmo que nós. Um abrigo, um alimento, água potável e uma cama para descansar antes de prosseguir a demanda. Por isso é que Fallout 76 ainda é um jogo com grande parte da sua estrutura similar à dos jogos anteriores, embora com condições mais duras. A sobrevivência está especialmente dificultada, terão que construir rapidamente o acampamento (funcionalidade implementada em Fallout 4) e partir para as missões possuindo um bom nível de experiência, assim como comida, água e objectos de primeiros socorros.

Convém ter atenção ao sítio onde se pernoita. O risco de apanhar doenças é grande.

De um modo geral, a exploração e tramitação dos passos a dar pela sobrevivência ainda é a mesma. Gerir o inventário destinando o que vai para a arca e o que vai no saco às costas, melhorar ou criar armas, armaduras, poções e comida, são alguns processos através dos quais facilmente perdemos dezenas de minutos. Daí o ritmo lento. Explorar muito bem as áreas, obter o máximo de coisas possíveis, separar o útil do descartável, exercer processos de transformação e depois sim é que se parte para a missão seguinte. A progressão gradual e o peso da exploração, no contacto com o mundo e nos diálogos com os sobreviventes, sempre se perfilaram como linhas-mestras da experiência Fallout, dentro do âmbito 3D.

As boas narrativas e as personagens com quem interagíamos ajudaram a elevar o padrão de uma boa história num videojogo, tendo a Bethesda aportado um importante contributo. Infelizmente, não se pode dizer que isso suceda em Fallout 76. Os npc's não existem. Assim que saímos da célula onde nos mantivemos com vida, dando cumprimento às primeiras missões que funcionam como um tutorial, apenas obtemos registos gravados, vozes num altifalante. Acabaram-se os famosos diálogos. Desapareceram as escolhas a tomar e respectivas consequências. A partir do instante em que abandonamos o "vault" não encontramos npc's, nem dialogamos como era costume. É uma inversão significativa. Perde-se em termos narrativos, com uma história naturalmente menos estimulante, em prol do multiplayer online.

Fallout 76 requer uma ligação online para ser jogado, embora não seja exclusivamente um jogo multiplayer. Pode ser jogado individualmente. O jogo deixa-vos cumprir missões a solo mas está talhado para proporcionar uma melhor experiência quando jogado com mais jogadores ao lado. Nalgumas missões as vagas de inimigos são tão avassaladoras que só através do apoio e trabalho por equipa darão cumprimento à missão. São os eventos que ganham relevo quando cumpridos em grupo. No mapa podemos ver a disponibilidade do evento. Se aceitarmos o repto pode entrar em contagem decrescente um relógio. Mas também neste tipo de missões a qualidade é discutível. Numa missão temos que avançar até pontos específicos assinalados no mapa e activar um conjunto de mecanismos, o que implica um avanço isolado. Noutra missão temos que escoltar um robô até um ponto de segurança na cidade. Boa parte destas missões são simples, implicando tarefas sem grande densidade narrativa. Ao incorporar o multiplayer online, a narrativa encolheu, transformando esta jornada num périplo por objectivos nesta reinterpretação da west virginia.

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Não há por assim dizer uma exclusividade de eventos singulares ou de multiplayer. Não ficam impossibilitados de aceder a estes se jogarem isoladamente, mas terão sempre mais dificuldade em sobreviver à maioria destes eventos. O acesso aos dados com os quais activam as bombas nucleares - em silos - é talvez o melhor desafio numa corrida desenfreada pelo nuclear. Mas há que ter em conta que sempre que conseguirem deflagrar uma bomba desta dimensão (a área atingida fica assinalada a vermelho no mapa), a exposição à radiação é maior (mesmo para quem esteja longe do ponto de rebentamento) e os inimigos estarão mais fortes. Arrasando a área, sobram mais itens para recuperar, sendo essa a grande vantagem da sua utilização.

Ainda que tenhamos uma amplitude favorável de armas à nossa disposição, das facas aos machados, são as armas de fogo que assuem maior importância, graças ao dano infligido pelos projécteis. À semelhança das armaduras, também as metralhadoras e pistolas podem ser modificadas. Podemos tratar disso numa banca onde repousam as ferramentas necessárias, mas como é apanágio da série, só poderão levar por diante as melhorias e alterações desde que possuam os objectos necessários, o que por vezes é uma tarefa bastante saturante que vos obriga a voltar atrás até encontrarem o objecto em falta. O impacto proporcionado por uma arma de fogo é enorme. Sobretudo nas áreas onde é grande o risco para uma emboscada, para não falar das patrulhas dos super mutantes. Ora, em Fallout 76 a Bethesda optou por modificar o sistema VATS.

Anteriormente, sempre que enquadravam um inimigo na mira o jogo entrava em pausa, deixando-nos seleccionar o ponto do corpo a alvejar. Alguns tiros saíam ao lado, mas era apesar disso um sistema bem sucedido. Agora tudo acontece em tempo real, o inimigo está sob a mira mas continua em movimento numa luta mais igual. Por um lado é um sistema mais simplificado e desafiante, embora menos eficiente quando se pretende abater uma vaga de chamuscados, ratos ou a sempre temível praga dos cães esfomeados. Também não se pode dizer que a inteligência artificial esteja ao melhor nível. Não está. É frequente vermos inimigos tomarem caminhos alternativos, ficarem presos quando a saída está ao lado ou atordoados, sem saberem por onde avançar. As suas reacções são por vezes difusas. Acontece com frequência ser visto por chamuscados no topo de um telhado ou uma varanda de casa. Ele corre até à ponta mas não é capaz de descer ou sair daquele lugar para vir ao meu encontro.

O desenvolvimento do vosso CAMP é imprescindível para que possam guardar o excesso de bagagem e material, além de desenvolverem as armas com as ferramentas. Podem até mudá-lo de sítio.

Em termos visuais Fallout 76 não é deslumbrante. Perante nós ergue-se um dos maiores mundos abertos criados para a actual geração de consolas. Dá gosto olhar para o mapa e ver tanto que há por descobrir mesmo quando temos acumuladas horas a explorar e a viajar até diferentes sítios. No entanto, as sucessivas actualizações do motor gráfico não apagam a sua significativa idade. Poucas texturas, ausência de pormenores e detalhe, uma visão de longo alcance nublada, problemas nas animações, efeitos de luz aquém do que já vimos possível nesta geração, impedem que Fallout 76 brilhe ao maior nível, ainda que artisticamente seja mais uma vez um jogo com imensa personalidade, quase único na descrição de um mundo pós-apocalíptico. O ultimo patch lançado para consolas - uma bomba de mais de quarenta Giga Bytes - solucionou muitos bugs e desligações ao servidores, trazendo mais estabilidade à experiência, mas é expectável que o apoio e os melhoramentos continuem nos próximos tempos, pelo que continuaremos a dar atenção à trajectória de evolução.

É compreensível a decisão da Bethesda em modificar uma das suas mais importantes séries de role play, deslocando-a do forte teor narrativo, da história e das personagens memoráveis para um mundo aberto, de grande dimensão e relevante, partilhado com os jogadores por via online. Sinal dos tempos e de um desinvestimento nas aventuras "single player"? Ou uma arriscada produção antes de Fallout 5? O que podemos dizer é que esta é uma experiência diferente, que põe de parte alguns dos melhores atributos que a tornavam quase exclusiva. A maioria das mecânicas são recuperadas (o bem sucedido sistema de evolução da personagem SPECIAL continua, assim como o CAMP, novidade em Fallout 4, através do qual fabricam o vosso acampamento), mas a performance técnica ainda não está isenta de falhas.

Se o multiplayer online pretende aqui ser enquadrado como a construção de uma história e as aventuras dos jogadores transformadas em arco narrativo, então acaba por ficar aquém já que nesse âmbito os sobreviventes vivem muito mais para cumprir tarefas e eventos de pendor multiplayer. Apesar disso ainda há uma chama Fallout (pode sempre ser jogado a solo mas sem o mesmo impacto das experiências passadas). Parte do que explica o sucesso da série ainda nos é entregue, mas percebemos que explorar a "wasteland", nestes moldes, equivale ir ao encontro de sentimentos mistos.

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