Famicom Detective Club - Review - Dose dupla dos arquivos da Nintendo
Elementar.
Enquanto uma das mais antigas editoras e produtoras, a Nintendo é proprietária de um arquivo abissal de consolas e jogos retro. Os fãs continuam a pedir novas versões de consolas mini, seja uma Game Boy Advance ou uma Game Boy mini, à semelhança do que aconteceu com a NES e a Super Nintendo, ambas de dimensões reduzidas. Mas a Nintendo entende que o seu serviço online da Switch pode também ser fortalecido e tornado mais apetecível com essas versões clássicas. Porém, desta vez, a Nintendo operou uma ida aos seus valiosos arquivos diferente do habitual, para nos brindar com uma dose dupla de crime e mistério, sob a forma de um remake de dois clássicos lançados em 1988 para a Family Computer Disc System, essencialmente um upgrade da Famicom que permitia o uso de disquetes para jogar.
Foi com um misto de surpresa que a Nintendo anunciou no final de 2019 a criação do remake dos dois jogos lançados para o sistema de disquetes: The Missing Heir e The Girl Who Stands Behind, ambos integrados na série Famicom Detective Club. A produção está a cargo do estúdio Mages, e a supervisão assegurada pela equipa que trabalhou no original, a Tose. Como curiosidade, ambas as narrativas foram escritas por Yoshio Sakamoto, um trabalho que ainda que longe de se medir com a popularidade que lhe trouxe Metroid, não é menos surpreendente tendo em conta o interesse e a procura existentes no Japão pelo crime enquanto género literário.
Até 2021 a Nintendo lançara apenas duas versões melhoradas de Famicom Detective Club, todas exclusivas para o Japão. Com este remake Switch é a primeira vez que Famicom Detective Club é lançado em inglês (com vozes em japonês), transportando um tempo marcado pela simplicidade, ao jeito das aventuras "point'n click". De uma versão que operava numa consola a 8 bit para a Nintendo Switch, muito mudou. Os gráficos foram refeitos e criou-se até um novo design para as personagens e fundos, que surgem agora com aspecto e composição muito diferentes do original. Há depois o factor da localização, embora na nossa versão possam jogar com a música 8 bit original, o que não deixa de ser interessante se estiverem mesmo a fim de vincar a onda revivalista.
Mecânicas simples conjugadas com a complexidade do crime
Famicom Detective Club é claramente um jogo de um outro tempo. Embora remake, melhorado, assente sobre um novo design e dotado de uma renovada banda sonora, nele vislumbramos certos limites decorrentes da Famicom enquanto consola 8 bit. Sem levar a cabo mudanças em termos de mecânicas e métodos de investigação, esta dupla de episódios parece mais próxima da origem das narrativas adaptadas a videojogo, nas quais o jogador percorre diálogos como quem volta as páginas de um livro e investiga clicando numa janela chamada comandos de detective.
Experiências mais recentes no âmbito da investigação criminal de primazia narrativa vieram demonstrar mais alguma versatilidade nesta abordagem, através de opções melhoradas e instrumentais, nalguns casos adaptadas à consola, embora sem deixar fugir o livro como suporte, como sucede em Hotel Dusk: Room 215 (Nintendo DS), em Chase: Cold Case Investigations - Distante Memories (3DS). Ainda que partilhem grande densidade narrativa com um Professor Layton ou mesmo Phoenix Wright: Ace Attourney, estes são muito mais vocacionados para os puzzles e para os seus jogos interiores. Não é que tenham menos contexto narrativo, serão até, nalguns jogos, mais densos, porém, apresentam diferentes mecânicas do ponto de vista das ferramentas disponíveis à investigação ou à desmontagem dos depoimentos das testemunhas em tribunal.
As mecânicas e o "core" de funcionamento do jogo é similar em ambos (foram títulos que se sucederam no espaço de um ano) os títulos, salvo algumas modificações em The Girl Who Stands Behind, pelo que ao avançar de um jogo para o outro verificam algumas diferenças. Perante um diálogo, seja no contexto dos primeiros momentos da investigação ou após o cometimento do crime, ou até mesmo nalgum espaço, o jogador é chamado a intervir escolhendo uma opção que funciona como um comando. Nem sempre todos os comandos são os mesmos, muitos só aparecem nalgumas situações, mas é certo que quase sempre poderão falar, examinar/observar, pegar e avançar para determinada localização. Estes comandos são apresentados numa espécie de vinheta no canto superior esquerdo e nalgumas opções desmultiplicam-se em novos comandos, como acontece quando querem falar e abrem-se os vários comandos mediante o nome das testemunhas, ou até de um álibi.
É todo um processo muito simples e intuitivo, que nos acompanha de forma permante. Claro que a situação na qual se encontram inseridos, a investigar ou obter dados relevantes, não é a mesma. Haverá um momento em que passarão à fase seguinte, bastando clicar no comando representado pela cor amarela. Por vezes, no entanto, ficam "fechados" naquele exacto ponto da narrativa enquanto não deslindarem o nó do contexto a desatar ou não explorarem até às últimas consequências algum tópico da conversa. Dependendo do contexto, há situações menos previsíveis e essas podem causar mais dificuldade, levando-nos eventualmente a clicar em todos os comandos até esgotar as possibilidades de investigação.
A lupa é uma óptima ferramenta e em muitas ocasiões teremos que examinar atentamente o cenário, o espaço onde nos encontramos ou alguma pessoa, com ou sem vida. As pistas tendem a escassear, pelo que urge apelar ao investigador que há em nós, procurando raciocinar como um criminologista, percebendo os pontos que podem mostrar-se de interesse para a investigação. É nestes momentos que o jogo projecta o desafio em termos de dificuldade. As nossas acções, no plano da investigação, produzem consequências e afectam a marcha da investigação até chegarmos à revelação de quem cometeu o crime e porque o fez. No entanto, a progressão é mais em linha recta, de acordo com a visão de Sakamoto, pelo que os jogos interiores, os erros nos interrogatórios ou a falha nalgum puzzle não são de todo impeditivos da desmontagem do crime.
Para nos avivar a memória, o livro de apontamentos e notas da nossa personagem funciona como um registo sempre disponível, do mais recente diálogo, deixando-nos voltar atrás na tentativa de encontrar algum ponto de interesse que tenha passado despercebido. Também os dados relevantes sobre as personagens são guardados de forma sumária, podendo ser consultados a todo o tempo. Tudo simples e fácil de aceder. Os menus são intuitivos e assim que passamos a entrar no âmbito do jogo, conseguimos resolver passar às fases seguintes. Existem mais de dez capítulos por jogo, de duração variável, sendo naturalmente as sequências derradeiras as mais desafiantes.
Duas investigações de contornos distintos com um toque sobrenatural
O único ponto em comum entre The Missing Heir e The Girl Who Stands Behind (criados por esta ordem embora o segundo funcione como prequela do primeiro) é o protagonista e novato investigador, ainda no começo da carreira enquanto detective para a firma Utsugi Detective Agency. Curiosamente, é necessário atribuir um nome à nossa personagem, embora não seja possível escolher representante do sexo feminino. Não é conhecido um nome, na série, deste detective que funciona como nosso representante, cabendo a cada um a palavra final sobre o assunto.
Pela ordem de produção, The Missing Heir é o primeiro jogo. E neste, tudo começa após o despertar de um estado de amnésia do nosso detective, encontrado pela assistente de detective Ayumi Tachibana, junto à falésia Unakami. Posteriormente, dando conta de um bilhete deixado no escritório, o detective segue para a Myoujin Village, onde começa a investigação em torno da morte da matriarca Kiku Ayashiro. Toda a investigação decorre numa grande e vetusta propriedade da família, ao longo de sucessivas gerações. É talvez o jogo no qual a fórmula comum a este tipo de investigações mais se dá. Existem muitas testemunhas, suspeitos e constantes reviravoltas. Mas dos dois jogos, este é o mais balizado no género.
Já The Girl Who Stands Behind, cronologicamente criado um ano após o primeiro, em 1989, funciona como prequela. A narrativa é bastante diferente, com contornos de natureza sobrenatural e tem por base o assassinato de Yoko Kojima, uma jovem colegial que nos tempos que antecederam a sua morte abrira uma investigação por conta própria. Somam-se os "plots" e todas as reviravoltas e temos, em minha opinião, a melhor investigação das duas histórias. O quadro de testemunhas é mais alargado, os alibis são frequentes e não raras vezes sentimos que o nosso detective não vai sair bem deste caso. Porém, pelo espaço e pela estreita afinidade com elementos do sobrenatural, é maior a tensão nos desfechos a cada capítulo, numa história que se alarga por mais de uma dezena de horas, embora dependa do tempo gasto nos diálogos, a passar por algumas repetições de testemunhos e a observar as provas documentadas.
Posto que todo o trabalho de reconstrução gráfica eleva a qualidade dos visuais ao nível de um Ace Attourney, por exemplo, com vinhetas abundantes em detalhes e expressividade nos rostos ao estilo manga, Famicom Detective Club apresenta-se renovado, cumprindo com as expectativas de remake de um clássico. Só não deixa de ser um jogo claramente de um outro tempo, assente em duas histórias de crime de grande densidade narrativa. A intervenção do jogador reduz-se à selecção de opções elementares, da escolha da mais correcta numa situação. É claramente uma obra simples do ponto de vista das mecânicas, embora detentora de um prospecto bastante interessante. É mesmo um daqueles clássicos que nos surpreendem, não só pelas qualidades do remake, como também por patentear a simplicidade de alguns jogos mais antigos. Pode prestar-se a alguma ambivalência a demarcação do tempo no título do jogo. Mas é também isso, um jogo dos primórdios, com as suas limitações mecânicas, naturais de um jogo oriundo de um outro tempo, mas também com os seus pontos fortes amplificados neste remake.
Prós: | Contras: |
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