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Firewatch - Análise

Será o banal uma questão de percepção pessoal?

Precisava de algo mais para não ser um simulador de caminhadas. No entanto a sua narrativa e visuais convencem.

Depois de imensa expectativa, eis que Firewatch está finalmente disponível. Toda a atenção que conseguiu conquistar na fase pré-lançamento é um dos mais puros atestados da incrível visibilidade alcançada pelas produções independentes, que tão frequentemente nos surpreendem pela positiva. É certo que todos querem ganhar dinheiro mas regra geral, estes pequenos estúdios tentam-no fazer de uma forma mais fiel à sua visão artística e os mecanismos que utilizam para estabelecer veículos de comunicação com o jogador, parecem desfrutar de uma ousadia que nem sempre está presente nas grandes produções. Jogos como Firewatch são cada vez mais importantes pois abrem acesso a um determinado tipo de experiência que só mesmo nesta era digital conseguem encontrar o seu espaço.

Ainda assim, talvez seja pertinente começar por pensar no que é verdadeiramente Firewatch e quais as reservas que os jogadores devem ter em conta. Não quero dizer que Firewatch é um engrandecimento pseudo-intelectual tão magnânimo que irá despertar os nossos sentidos de forma transcendente. Não, apenas quero dizer que é um daqueles títulos que percorre aquela estreita linha entre experiência e videojogo, tão susceptível a controvérsias. É uma experiência que permanece fiel à sua integridade artística, mesmo que pelo caminho descarta muito do que a maioria gosta de considerar como elemento definitivo de um videojogo.

Firewatch transporta o jogador para as florestas do Wyoming, para onde Henry, um homem com quarenta e alguns anos decidiu escapar dos dramas intensos da sua vida. Lá, irá passar o pacato Verão como guarda-florestal desfrutando de uma pausa longe do resto da humanidade. É desde logo aparente que Firewatch tenta suscitar emoções no jogador. Os primeiros minutos de jogo são passados a tomar decisões na vida de Henry que fizeram inevitavelmente com que ele chegasse a este momento. Sejam qual elas forem, a vossa vida está virada do avesso mas estas escolhas vão ter um impacto, mínimo, no decorrer do jogo.

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Pelo menos na forma como conversa com Delilah, a supervisora com quem Henry vai estabelecer uma amizade. A relação entre os dois é o elemento principal de Firewatch. Não só porque é Delilah quem dá as ordens a Henry mas também porque as conversas entre os dois serão o traço principal da experiência. Mais do que meras conversas que o jogador presencia, tal como nos momentos iniciais, teremos que responder ou perguntar e traçar aos poucos o perfil do nosso Henry. Talvez seja o seu maior encanto, a forma como transporta o jogador para aquele mundo e quase nos faz sentir como se fossemos verdadeiramente Henry.

Rapidamente esquecem a necessidade de caracterizar Firewatch como jogo ou experiência e só querem explorar mais, querem conhecer mais da vida de Henry naquele Verão em 1989. Como se fosse uma novela escrita ou um livro que teima em não vos dar sossego, absorvem todos os diálogos e o vosso cérebro começa a magicar que o mundano poderá não ser assim tão certo. Será que todos nós temos a necessidade de ver algo mais do que na verdade é em tudo o que acontece? Será benéfica esta incessante procura por emoção em tudo? Para os que já terminaram Firewatch, esta será uma pergunta mais pertinente.

O cérebro é a nossa principal ferramenta

Firewatch poderá até ser encarado como um teste de carácter, uma experiência cujos dados devem estar em segredo a ser recolhidos pelo Campo Santo para traçar um perfil da personalidade de cada um dos jogadores. Como uma inimaginável conspiração que certamente deixaria os vossos amigos a chamar-vos de loucos. A percepção do que é banal rapidamente se torna altamente relativa e passo a passo o nosso cérebro imagina as situações misteriosas que estão à nossa espera consoante caminhámos pelo lago, desfiladeiro ou bosques do Wyoming. Firewatch tem uma maneira de brincar connosco, de nos fazer crer em algo que na verdade só existiu na nossa mente. Como se fosse uma aguça para a nossa afiada imaginação. Será uma questão altamente pessoal, como cada um interpreta os diferentes acontecimentos, e isso será parte do apelo.

Não irei falar mais sobre o enredo, até porque é um dos elementos fulcrais deste jogo, mas Firewatch brilha pela forma como parece permitir que o jogador brinque com a sua imaginação. Através de pequenas sugestões visuais, através de conversas com Delilah, o jogador vai criando na sua mente uma série de acontecimentos que podem, ou não, ir ao encontro daquilo que esta dupla está a pensar. É fácil verificar que a história e final de Firewatch dividiram imenso a comunidade de jogadores mas será altamente difícil alguém criticar o que foi feito para lá chegar. Provavelmente será outra mensagem escondida em Firewatch, mais importante do que o final, é o percurso que realmente importa.

Ao longo da minha estadia em Wyoming, senti-me como um adulto a receber lições de vida mas também me senti como um menino a dar largas à sua imaginação. Foi fascinante constatar a minha sede por algo extraordinário quando o mundano poderá ser por si só capaz de ultrapassar tudo o que imaginámos. Firewatch não tem quebra-cabeças, não tem secções difíceis que vos vão deixar a pensar como as ultrapassar, pelo contrário, é muito directo e assim que começam a conhecer os locais, rapidamente os percorrem. O Campo Santo decididamente centrou-se na narrativa e concebeu em sintonia o elemento visual para mais envolvimento de quem o joga. A sua capacidade de imersão é incrível e quando derem por ela, são apenas um Henry curioso que por qualquer coisa , liga para a mais experiente Delilah lhe entregar um diálogo que aprofunda as personagens.

Existem caixas espalhadas pelo parque que nos dão pistas sobre o que já se passou aqui em anos anteriores, mais elementos para adicionarmos ao mapa e no geral, o jogo é bastante directo. À excepção de um ou dois momentos em que propositadamente envia o jogador para lados opostos do mapa, Firewatch é um jogo que procura instigar a curiosidade do jogador com a sua narrativa enquanto o delicia com os seus visuais.

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Visualmente tocante

Firewatch esforça-se imenso para não ser um 'simulador de caminhadas' mas na verdade talvez o seja. Apesar de preferir pensar nele como uma espécie de novela interactiva, o tempo que passamos a caminhar por esta reserva florestal enquanto absorvemos a magia do elemento visual certamente assim o sugere. É fácil o jogador apaixonar-se pelo encanto dos visuais. Escapando à obsessão pelo realismo que a dada altura se tornou num estigma desta indústria, Firewatch utiliza os seus cenários como se fossem uma espécie de poesia visual. Desafio qualquer um a jogar Firewatch sem tirar uns bons print-screens que facilmente serviriam como padrão de fundo para o vosso computador ou PlayStation 4. É mesmo um jogo capaz de envolver o jogador.

Desde a deslumbrante iluminação que pinta de diversas faces os locais que percorremos, alguns deles parecem ganhar uma nova personalidade quando percorridos numa altura diferente do dia, sem esquecer a palete de cores que nos faz sentir confortáveis no papel de guarda-florestal. Graficamente, Firewatch é mais um atestado do engenho artístico que percorreu as veias do pessoal no Campo Santo. Será difícil não olhar para este mundo e não sonhar em como seria lá estar.

Juntamente com a componente sonora, Firewatch agarra o jogador e só falta mesmo sentir o calor do sol a tocar a nossa pele. Mais do que a música, toda ela muito bem trabalhada e importante para a atmosfera do jogo, são os sons e ruídos ambiente que nos fazem entrar na pele de Henry. O vento a percorrer pelas árvores, o chilrear dos pássaros, e outras componentes do elemento auditivo, fazem com que seja um título muito sólido neste aspecto. Tal como o trabalho dos actores que dão voz a Henry e Delilah, a sua qualidade é imensa.

A sensível questão da longevidade

Por esta altura, muitos já devem ter ouvido falar sobre a sensível questão da longevidade em Firewatch. A verdade é que em apenas 4 horas o jogador consegue viver a experiência de Henry. O verão é desfrutado ao ritmo de uma refrescante narrativa que consegue manter o suspense sempre presente e o jogador a magicar possíveis desenlaces para as diversas situações. Por outro lado, é fácil sermos subitamente remetidos para uma realidade que nem sequer nos passou pela cabeça, apesar de credível e mundana.

Uma experiência destas pede quase uma postura específica, pede um pouco mais do jogador para se inteirar em pleno nela. No entanto, a experiência em Firewatch será tal como na vida real, alguns levam o seu tempo a saborear os pequenos e banais momentos que nos são dados, outros irão correr apressadamente sempre à espreita do que virá a seguir. É fácil olhar para Firewatch e pensar num dos maiores dilemas da humanidade: sempre preocupados com o passado e com o futuro que nos esquecemos de viver o presente.

Mesmo para os que vão desfrutar de Firewatch lentamente, de forma alguma apressei o jogo mas senti o final aproximar-se mais rapidamente do que poderia prever, vão ficar sem grandes incentivos para regressar. De certa forma, as ramificações e opções nos diálogos sugerem que não desfrutam da profundidade necessária. A dada altura parece óbvio que seja qual for a nossa escolha, o final está traçado e apenas será possível alterar algumas frases dos diálogos e pequenas coisas circunstâncias.

A jornada de Henry e Delilah já estava escrita, o jogador apenas a tinha que viver e acreditar que seria protagonista com algum impacto nos diálogos. Poderá a dada altura assumir-se como uma percepção errada mas ainda assim confortável para os que desejam sentir-se mais do que meros espectadores nesta narrativa. Não existem obstáculos à progressão do jogador, não existe nada que o faça sentir-se desafiado, pelo menos não no sentido tradicional de um videojogo.

Seja de que forma for, Firewatch é uma experiência que verdadeiramente enriquece quem a ela se submeter. Coloca a sua narrativa e visuais em primeiro plano, não se importa com a longevidade pois sente que a todos os instantes faz tudo o que pode para glorificar a beleza visual que os programadores ousaram criar. Será difícil escapar à sensação de um "simulador de caminhadas", por muito bem disfarçado que esteja, e é pena não existir maior liberdade na importante narrativa para incentivar o regresso a Wyoming noutro Verão.

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