Gran Turismo 6 - Teste de resistência
Uma experiência que perdura.
Ao longo da sua iteração, a série Gran Turismo tem assinalado no mosaico de honra dos jogos de automóveis a força da sua passagem. Mesmo não sendo unânime entre críticos e fãs devotos do jogo o patamar de qualidade atingido em cada uma das versões lançadas, o que começou por ser uma surpreendente proposta do género para a Playstation, que oferecia essa particularidade de proporcionar um contacto interactivo em pista com os carros do dia-a-dia e muitos que só víamos pela televisão, rapidamente alcançou um espaço de grande autonomia na indústria e relevância no quadro do desporto automóvel internacional.
Desde o lançamento do programa de talentos através do GT Academy, onde milita o nosso Miguel Faísca, ao documentário alusivo ao criador de Gran Turismo, Kazunori Yamauchi, às colaborações mantidas com prestigiados designers da Fórmula 1 como o Adrian Newey da Red Bull, e ligações a marcas de referência visando a produção de carros protótipos, dificilmente a Sony teria arquitectado outra trajectória se pudesse avançar depressa no tempo e perceber no que dava o investimento em GT. É um dos trajectos mais sólidos desenvolvido por uma produtora obstinada e liderada por um conhecedor experimentado sobre o que significa pilotar em competição mas também sentir a curvatura do volante. Gran Turismo, a altas rotações, mexe com as emoções.
Muito embora sejam visíveis algumas falhas e se descubra que muito trabalho aguarda pelos engenheiros da Polyphony Digital se eles quiserem elevar o padrão de qualidade da série na chegada à PS4, o apelo e chama da série permanecem intactos, especialmente em Gran Turismo 6, que realiza a sua última volta na histórica PlayStation 3, oferecendo uma experiência completa, fruto das diferentes divisões do desporto automóvel que abrange. Embora na comparação com GT5, a perda do modo B-Spec seja a ausência mais reclamada, juntamente com outras opções miúdas definidoras de uma melhor personalização, GT6 na sua extensão e conteúdo consegue sobressair.
A formatação da experiência proporcionada por Gran Turismo 6 atinge a sua plenitude dentro da categoria dos monstros sagrados de Le Mans, onde podemos incluir a título de exemplo, o reverberante Mazda 781B de 1991, capaz de emitir o rugido mais cavernoso do pelotão desse ano, ou o emblemático Pescarolo Courage Judd GV5 de 2004. Negociar as míticas curvas do traçado de La Sarthe não é o mesmo a bordo de um protótipo. A velocidade vertiginosa derivada dos enormes e selvagens propulsores dos carros de Le Mans de noventa, e até dos clássicos como o Ford GT (criado pela marca americana para destronar a Ferrari e Porsche depois de anos a fio a vencer a prova francesa), é uma faceta do jogo que se expande ao longo da volta ao circuito cifrada em pouco menos de quatro minutos contados ao cronómetro. A extensa reta das Hunaudieres perdeu algum entusiasmo com a introdução das chicanes PlayStation e Michelin, mas depois da apertada curva em Mulsanne e até Indianápolis, cumprem-se duas direitas diabolicamente rápidas, feitas sempre a fundo. As curvas Porsche e Miason Blanche desafiam a afinação dos bólides, numa sucessão de curvas e contracurvas que requerem prudência na aproximação aos veículos precedentes.
As inconsistências ao nível da inteligência artificial constituem o flanco mais exposto às críticas dos jogadores. Isso pode acontecer em diferentes momentos da corrida: quando os pilotos que prosseguem na frente inexplicavelmente perdem demasiado tempo em poucas voltas, permitindo uma aproximação, mas também quando travam demasiado cedo em secções apertadas, provocando embates desnecessários. Esta actuação em pista como um obstáculo anula não raras vezes uma luta mais acesa e disputada pela posição. O cenário, não é de todo irreal. Em campeonatos como o WTCC vemos os pilotos lutarem demasiado pela posição, com o da frente a travar mais cedo de modo a ganhar tempo à saída da curva e com o piloto perseguidor a embater ligeiramente no da frente, preparando-se para o tragar um par de curvas à frente.
Curiosamente é com um outro velho circuito repetente que se define esta amplitude reconfortante de Gran Turismo dentro da categoria reservada aos carros de Le Mans. As curvas mais estreitas, os ressaltos, irregularidades no asfalto, inclinações e as diferentes secções que nos habituamos a memorizar por força da sua espectacularidade e dificuldade, funcionam como peças de um sistema propulsor que uma vez interligadas nos devidos termos entregam o consolo de uma volta perfeita, apesar das condições adversas.
A disponibilidade do traçado belga SPA Francorchamps desde o primeiro instante, reforça o sentido de viagem pelo mundo, um voltar ao zero, como uma caixa de velocidades de um Fórmula 1: se a quinta velocidade esgotou há uma sexta logo a seguir, podendo ainda meter-se uma sétima. A Polyphony Digital percebeu a importância dos circuitos, tão ou mais relevantes que os dez ou vinte carros e por isso alargou a base de competição, reforçando as ligações aos diferentes continentes. Cada circuito é como um jogo novo, um elemento de reaprendizagem da condução mas também um espaço pitoresco quando não marcado por aquele ângulo televisivo que sempre fez a diferença nas transmissões de um canal desportivo. Willow Springs, no meio do deserto, oferece o cenário perfeito de um western em que os cavalos mergulharam num extenso capôt e as perseguições foram substituídas por batalhas até uma bandeira axadrezada. Mount Panorama, Goodwood e o sempre arestado traçado de Silverstone (um aeródromo durante a segunda guerra mundial) confluem dentro do que pode ser rotulado como prazer de condução.
Quanto mais esforço irá ainda a Polyphony Digital depositar nesta versão é uma incógnita, mas se avaliarmos o percurso de GT5 não será surpresa a entrega de novos conteúdos ao longo do ano. Depois da actualização em Janeiro, que veio desbloquear o campeonato Red Bull e um desafio particular de Sebastian Vettel, como corolário da sensação de velocidade máxima, perspectiva-se que ligações deste género, como a que se vê nos créditos de abertura relativamente ao Instituto Ayrton Senna, trará quase de certeza o mítico McLaren Honda do piloto brasileiro à superfície.
Muitos olhos e mãos estão postos na sucessora da PS3. Os engenheiros da Polyphony Digital fazem-no há mais tempo, mas nesta saída de curva, Gran Turismo 6 vê-se num jogo de forças opostas; uma ambição desmesurada e uma vontade em tocar nos pontos nevrálgicos do desporto automóvel, e uma certa resiliência em abandonar alguns espartilhos que não permitem obter a aderência completa. É esse o desafio seguinte para a produtora, equilibrar este jogo de forças e encontrar o ponto óptimo, a garantia de validade da série para a próxima geração.