Lágrimas escaldantes
Espadas, balas e muito rock, baby: Devil May Cry.
Bayonetta 2, a sequela de um dos melhores jogos de acção da anterior geração de consolas, está a poucas semanas do lançamento exclusivo na Nintendo Wii U. É um dos jogos mais fortes do catálogo da companhia para os últimos três meses do ano e dá continuidade ao vendaval de acção levantado por uma das personagens mais icónicas dos últimos anos. Criação original de Hideki Kamiya, um dos mais destacados produtores japoneses pelo contributo para os jogos de acção 3D, Bayonetta não é novidade na sua lista de tópicos quentes nas suas produções: personagens marcantes e coordenadas de jogabilidade únicas, a render suprema espectacularidade, doses massivas de acção e curvas de dificuldade hardcore.
Hideki Kamiya chegou-se à frente na Capcom quando Shinji Mikami, mestre dos jogos de terror, o lançou, ainda cedo, na série Resident Evil. Após provar reacções opostas em dois capítulos, a maturidade e entrada na "idade adulta" de Kamiya começou efectivamente com o exclusivo Devil May Cry para a PlayStation 2, o jogo que nos mostrou o super herói Dante, um meio homem meio demónio, num mundo gótico, pejado de demónios e onde quase tudo se decide à luz da espada e das balas.
Lançado em 2001, Devil May Cry desempenhou um papel central no crescimento da consola da Sony rumo ao sucesso que ofuscou toda a concorrência. Na verdade, Kamiya revelou-se exímio no aproveitamento da produção em 3D para sedimentar uma segunda fornada de jogos que estabeleceu as bases para a maior parte das produções 3D actuais. Ao mesmo tempo, Devil May Cry destacou-se pela presença de uma personagem forte, carismática e que depressa conquistou uma legião de fãs, pelo estilo único de combate, uma conjugação poderosíssima entre uma espada de assinalável respeito e duas armas de fogo, faiscando sem cessar, a Ebony e Ivory.
Breves momentos a controlar Dante bastam para comprovar as magníficas mecânicas e o assalto em estilo. Golpes fundos e movimentos rápidos com a espada Alastor, articulam-se suavemente com a pressão dos gatilhos de duas armas que disparam sem cansaço, enquanto o herói passeia calmamente como se ao seu redor não existisse a mínima hostilidade. É conhecido o fascínio que Kamiya nutre pelos jogos arcade clássicos, mas da sua mesa de trabalho os olhos estão postos no futuro, no que ainda pode programar para levar os jogadores ao delírio. Devil May Cry tem nas suas influências alguns clássicos 2D de acção, mas também ângulos de câmara fixos, uma estética gótica, uma personagem espadaúda "fashion" de cabelos platinados e alguns elementos de Resident Evil, mas sem um travão nos movimentos. Devil May Cry rapidamente subiu para o trono dos jogos de acção, permanecendo até hoje entre os melhores.
A história de Dante consta dos livros proibidos. Filho da união entre Sparda, um cavaleiro das trevas e uma humana, é chamado assim que a humanidade entra novamente em perigo. Devil May Cry é esse combate contra as criaturas das trevas, numa batalha árdua e profunda. Acção sem limites, em tons góticos e com fortes sequências cinematográficas a intervalarem os momentos de grande pressão no gatilho e manejo da espada, o delírio de uma campanha arrumada por missões, que atinge o pináculo no confronto com os bosses. Em momentos de elevada dificuldade somos levados a extrair o máximo das habilidades, poderes e magias do nosso herói.
A aventura principia num castelo gótico, envolto numa bruma aterradora e onde os passos de Dante, nesta porta do inferno, são como explosões num mar silencioso que nos segue, só quebrado, espaçadamente, pela trilha sonora que faz disparar a tensão pela entrada no primeiro combate. Mal uma criatura infernal e fantasmagórica se perfila no nosso caminho, as coordenadas sonoras arrancam ritmos tempestuosos e a perspectiva do jogo fixa-se, deixando-nos por nossa conta, com as armas que temos à disposição e a nossa perícia para sair com sucesso daquele sufoco.
Os cenários pré-renderizados e os ângulos fixos são algumas das derivações de Resident Evil. Mas a estética única de Devil May Cry rapidamente sobressai, diferenciando-se de outras produções. O movimento enérgico e rápido de Dante possibilita combates de grande fulgor e dinamismo. O bestiário é colossal e se as primeiras criaturas são decepadas e abatidas, com alguma facilidade , outras teimam em levantar-se, tal como zombies mal estoirados, e tiram alguma da nossa barra de vida. Mais fortes, algumas requerem o estudo e encontro do seu ponto fraco. O "lock on" permite-nos fixar um adversário, mas com a contrapartida da nossa personagem se movimentar a passo, o que pode ser complicado de gerir quando se impuser uma fuga. Mas rapidamente os combates se travam como se tudo fosse um bailado, num ritmo insano, cheio de efeitos especiais e golpes aéreos surpreendentes
As criaturas terríficas sucedem-se a um ritmo avassalador numa parte avançada do jogo, especialmente depois do primeiro embate com Phantom, uma espécie de tarântula gigante explosiva. O bestiário é fenomenal e a diversidade de criaturas que a equipa de Kamiya injectaram no jogo tornaram-se ossos duros de roer, figurando na nossa memória.
Mas Devil May Cry não é só um jogo de acção, acção e mais acção. Em momentos de pausa, como se o exército infernal recuasse às profundezas para sarar as feridas abertas pelo filho de Sparda, a colocação de puzzles, como barreiras de progressão, implicam uma abordagem mais cerebral, ainda que as deslocações até um ponto anterior, desde logo observando cuidadosamente o mapa, produzam uma repetição de combates e de criaturas anteriormente liquidadas.
Pelo meio a recolha de orbs torna-se obrigatória e vital para o sucesso da missão. Algumas bem visíveis, outras criteriosamente escondidas, é com estas gemas que abrimos portas seladas mas também melhoramos as habilidades, poderes e saúde de Dante. Jogado na dificuldade base, Devil May Cry proporciona um bom desafio, o que á época contribuiu também para a sua sustentabilidade especialmente junto dos fãs "hardcore", embora os entusiastas possam cumprir a demanda com um grau de exigência mais acentuado.
Depois de Devil May Cry, nada ficou como d'antes. Os jogos de acção conheceram um título que cravou uma marca funda nas produções 3D, e só em 2004, o regresso de Ninja Gaiden, numa versão actual e pela mão do "lendário Samurai" Tomonobu Itagaki, revelou conteúdo capaz de ombrear a produção de Hideki Kamiya. Como vem sendo um hábito nas suas produções, a direcção das sequelas coube a outros programadores da Capcom. Nem todas alcançaram o mesmo patamar de qualidade do original, embora com recuperação no terceiro e quarto capítulos. Já o último DmC, criado pelos estúdios da Ninja Theory, não mereceu consenso entre os fãs. 13 anos mais tarde, Devil May Cry ainda se joga tão bem como em 2001. E enquanto não chega Bayonetta 2, sempre podem começar a treinar por aqui. Um treino dos duros mas uma experiência única.