Lone Survivor: Director's Cut - Análise
Instinto de sobrevivência.
A lógica de um sonho e a ausência de restrições que dele derivam são algumas das ideias que levaram Jasper Byrne, cidadão britânico amante e produtor de música (contribuiu com quatro temas para o bombástico Hotline Miami e outras da sua autoria vão aparecer na sequela Wrong Number) e criador de videojogos, a produzir este "indie" Lone Survivor com a colaboração dos estúdios Superflat Games para o PC e Mac em 2012, reacendendo a chama "survival" com uma estética retro. A versão Director's Cut que aqui analisamos, melhorada com a introdução de um modo novo jogo mais, que adiciona novos items, diferentes diálogos e desfechos, permitindo a cada jogador criar a sua experiência, começou por sair em Setembro do ano passado para a PS3 e para a PS Vita, tendo há pouco tempo sido editada na eShop da Nintendo Wii U.
Mais de dois anos de publicações, melhoramentos e compatibilidades com diferentes plataformas não se confundem com os quase sete ou oito anos que o jogo passou até ganhar versão definitiva, primeiro na incubadora de ideias do autor e depois na mesa de trabalho onde os píxeis deste "survival", de resolução de 160 x 90, encaixam meticulosamente. Byrne não quis ir de encontro ao formato mais usual baseado em procedimentos típicos de um "shooter", afastando também as narrativas lineares. Curiosamente o esboço e desenho inicial do jogo arrancaram com a estrutura de um point'n click, tendo a viragem acontecido quando Byrne fez um outro jogo chamado Soundless Mountain e que o próprio autor cita como um "demake" de Silent Hill 2, ganhando validade a ideia de um mundo alternativo e próximo do sonho.
O afastamento do modelo típico das aventuras em formato "shooter" permitiu a Byrne explorar diferentes contextos e jogabilidades, sobretudo no capítulo dos "puzzles". Ao mesmo tempo, o isolamento e arrefecimento iniciais, num espaço às avessas por força de uma mutação que transformou humanos em monstros capazes das piores atrocidades, deixam a personagem entregue a si mesmo, sujeita à fome, cansaço, sono, enquanto um duro desafio psicológico se ergue diante de si como uma das maiores barreiras. Grande parte do jogo transmite exactamente estas diferentes emoções, conduzindo o jogador por labirintos, espaços difusos e muitas portas fechadas antes de se acender alguma luz para logo de seguida a apagar.
Lone Survivor: Director's Cut (LS:DC) não testa a paciência em demasia nem pune desmesuradamente, refreia a intensidade e o desafio, deixando sempre pontas para o jogador investigar e seguir. Inúmeras pistas são lançadas à medida que avançamos um pouco mais naquele espaço nebuloso, frio, de parca luminosidade, desconfortável, repugnante, retirado e assolado por uma praga de monstros dispostos a tolher de morte um homem que nunca sabemos muito. Diz-nos ser o único sobrevivente, equipa uma máscara que lhe tapa o nariz e a boca e tem um quarto onde dorme, retempera forças, e onde sonha com mais actos impossíveis, dos quais emerge uma sinistra personagem, com uma caixa de cartão enfiada na cabeça. Através do rádio, do outro lado, uma voz amarrotada pela estética parece trazer, apesar do tom, boas intenções.
O instinto de sobrevivência impõe-se fatalmente, o tal acentuar do "survival", numa limitação significativa de comida e meios de defesa, sem os quais "nós", enquanto personagem principal, acabamos por sofrer as consequências, com referências ao estado débil, à urgência de certos alimentos (nem todos são bem aceites, como a carne putrefacta) mas também a inicial incapacidade de lidar com os monstros que rondam corredores e isolam acessos, farejando a nossa presença à mínima distância.
A exploração surte efeitos. Há comentários para quase tudo: um pintura do tipo paisagem com Nova Iorque em fundo (não se vê muito bem, a imagem é deveras pixelizada), pares de sapatos, peluches, roupeiros, cápsulas medicamentosas, folhas com importantes anotações escritas à mão, pilhas, munições e uma pistola do tipo 16 mm, que alívio (parecia que não). Pelo sim pelo não levamos boa parte do que encontramos deixado nos corredores e quartos. Espólio que adquire utilidade mais à frente. Uma lanterna apoiada ao pescoço ilumina zonas lúgubres, onde por vezes se escuta uma respiração vagarosa e pesada. Quando identificada e dada a proximidade, uma sonoridade metálica e arranhada assinala a infalível perseguição. Os mutantes não percorrem todo o corredor. A partir de certa distância parecem medir o afastamento, estacando e regressando à sua rotina de vigilantes espertos.
As baterias que equipam a lanterna perdem energia, pelo que a sua natureza mais do que não perene, obriga a moderação na utilização e até mesmo a enfrentar o escuro, um pouco como quem palpa as paredes. A dificuldade na exploração é acentuada pelo uso moderado do mapa. Apenas em certos pontos o mesmo é disponibilizado para uma leitura rápida, a solicitar memória. Portas abrem para mais um corredor, espelhos transportam a personagem para outra área e mais portas se perfilam ao longo de um corredor. A área infestada é um extenso labirinto, complexo e envolvido nesta engenhosa e complexa mecânica de sistemas de jogo.
Alguns pontos podiam ter sido acautelados, desde logo um melhor sistema de gravação. Sendo que o único "slot" de gravação só existe no quarto da personagem, se não queremos ficar apeados do processo acumulado, temos sempre que regressar à base, o que mais à frente e após expedições mais distantes, implica algumas deslocações, atenuadas pela existência de uns espelhos que funcionam como portais. A existência de mais pontos de gravação em pequenos anexos e espaços de arrumos facilitaria imenso.
Por outro lado, o estado de saúde da personagem fica intermitente quando se encontra à beira da exaustão e fome. Não sendo anulado nenhum destes efeitos, através do repouso e da alimentação, somos constantemente bombardeados com as mesmas expressões, como se não fossem evidentes os sinais, especialmente o contorno avermelhado do ecrã. Numa situação, quando a personagem encontra um alimento enlatado, só o poderá abrir depois de obter os utensílios adequados. Percebe-se a ideia, tanto que mais à frente, será possível fabricar uma quase refeição a partir de uma botija de gás, mas em situações de vida ou morte o processo podia estar um pouco mais simplificado.
Esta teia de desafios, apelos à memória e investidas tornam LS:DC um jogo não apenas intrigante, complexo, engenhoso como também desafiante e apelativo. Por vezes a resolução para um puzzle ou certo desafio passa por algo simples, como fazer deslocar a personagem de costas voltadas para a parede, enquanto um mutante ciranda mesmo à nossa frente. Se alguns confrontos podem ser evitáveis, outros requerem o uso da força, uma série de disparos certeiros até que a criatura sucumba. O tratamento dado ao combate é simples, decorrência da estrutura 2D do jogo e da arte pixelizada, afastando movimentos de câmaras ou posicionamentos especiais da personagem.
A opção por uma resolução inferior à usada por consolas da geração 8-bit não impediu Byrne de concretizar um design suficientemente irrigado de elementos que habitualmente perpassam os survival, sobretudo com sugestões fortes e uma imagética desconcertante, pondo ênfase nas manchas de sangue, na pouca luminosidade, nos estragos, numa podridão, em pequenos montes de tijolos e terra, corpos sem vida: um complexo habitacional e industrial voltado ao avesso.
A utilização de auscultadores é recomendada como forma de proporcionar mais algum ganho em termos sonoros. Porém, não é um jogo capaz de apanhar o jogador desprevenido, de o aterrorizar e de o deixar desconcertado. É apreciável o esforço nas sequencias oriundas dos sonhos e certos flashes e transições causam impacto, tudo intenções do autor. Já as mecânicas e complexo sistema criado em torno deste projecto de sobrevivência, a partir de um substracto narrativo capaz de emitir diferentes mensagens, elevam um "side-scroller" 2D de composição "retro" à categoria das experiências de sobrevivência mais intricadas.