O Medo de Perder
A base emocional dos hardcore e casual gamers.
Porque é que quando nos oferecem algo grátis (ex. óculos de papel para ver um filme 3D), temos tendência para agarrar mais unidades do que aquelas que realmente precisamos? Porque é que quando encontramos um produto de que gostamos (ex. consola) numa promoção louca a 30% do preço normal temos vontade de comprar mais do que uma? A explicação para ambos os casos, é porque temos medo de perder a oportunidade. Arranjamos desculpas para nós próprios, como o facto de uma consola se poder estragar, ou podermos levar uma para a casa da praia e outra para a universidade, etc. Mas no fundo é uma reposta fisiológica de medo que se apodera de nós, que controla os nossos processos mentais e nos incita a agarrar mais, a conseguir mais.
Isto mesmo acontece quando jogamos e nos focamos em ganhar. O querer ganhar surge-nos como ideia de algo a atingir, ao qual o nosso corpo responde com respostas fisiológicas de medo de perder. Quanto mais vontade de ganhar tivermos, maior será o sentimento de medo de perder. Este sentir é traduzido por respostas emocionais de ansiedade, stress, nervosismo, irritação, ou raiva, todo um quadro que corresponde a respostas fisiológicas de tensão e que empurram o jogador para a necessidade de ganhar. Só com a condição de vitória ultrapassada se dá a descarga da tensão, e aquelas emoções dão lugar a emoções positivas como a alegria.
Este é um processo desencadeado mentalmente pela vontade de ganhar. Ou seja, tudo isto começa com o nosso cérebro a prever que vamos conseguir ganhar, que vamos obter o que desejamos. Dan Gilbert [1] refere que o nosso cérebro, enquanto "simulador de experiências futuras", sofre um "viés de impacto". Ou seja, sobrestimamos constantemente as possibilidades de conseguir o que queremos, seja a prever eleições, resultados de exames escolares ou médicos, ou de jogos desportivos. Como tal, não estamos dispostos a aceitar outro resultado para além daquele que prevemos. O não conseguir atingir o resultado pretendido desencadeia uma resposta de frustração. E esta frustração irá prolongar-se, instigando as pessoas a voltar a tentar, ou na impossibilidade de o poder fazer a resignar-se em frustração.
Ora o que Dan Gilbert nos diz também, é que podemos ser felizes mesmo quando não atingimos aquilo que queremos. Ou seja, não precisamos de nos resignar na frustração. Nos seus estudos verificou que, as pessoas que não conseguem exatamente o que queriam, mas algo aproximado, ao fim de algum tempo passam a gostar mais daquilo que conseguiram, do que gostavam antes. A este processo de passar a gostar de algo aproximado ao que queríamos, refere-se como a Felicidade Sintetizada, ou Apreendida. Ao passo que conseguir o que queríamos, desencadearia uma chamada Felicidade Natural. E vai mais longe porque demonstra, que o que acontece, não é um simples resignar ao que se conseguiu, mas é antes um processo de transferência de carga afectiva. Na realidade passamos mesmo a gostar mais daquilo a que antes éramos até indiferentes.
Esta questão divide-nos assim em dois grupos de pessoas, os que buscam a felicidade natural a qualquer preço, daquelas que aprenderam a lidar com a felicidade apreendida porque perceberam que ao fim de algum tempo as memórias não se diferenciam. Aliás diríamos que no primeiro grupo estão aquelas pessoas, em que o medo de perder é ativado por antecipação e é ele que se encarrega de instigar a pessoa a lutar por aquilo que tanto quer, nem que seja, como diz o ditado, "num jogo a feijões".
"Os hardcore gamers não descansam enquanto não conseguem terminar um jogo."
Vou mais longe e digo que no primeiro grupo estão os hardcore gamers, e no segundo os casual gamers. Os hardcore gamers não descansam enquanto não conseguem terminar um jogo, enquanto não conseguem limpar 100% dos achievements propostos. Estão num estado quase contínuo de medo de perder, de ter faltado algo, de não ter conseguido atingir algo. Existe uma ansia que os instiga a continuar a tentar, e quanto mais difícil for o jogo maior será o desejo de prosseguir, e mais elevada será a ansia de conseguir extrair toda a felicidade natural que o jogo lhes possa dar.
Já o segundo grupo gosta de jogar de vez em quando. De preferência pequenos jogos, com poucos objectivos, e fáceis de alcançar. Porque se forem demasiado extensos, complexos ou difíceis rapidamente desistirá e irá procurará experiências aproximadas. A felicidade apreendida é assim obtida por via do uso de outros objetos que exijam menos luta, que sejam menos competitivos, mas consigam ainda assim satisfazer a necessidade da pessoa. E nesses objetos enquadram-se por exemplo os livros ou os filmes, nos quais estes processos não se colocam diretamente ao espectador. O livro ou o filme, ainda que possam requerer uma maior bagagem intelectual e processos de interpretação mais treinados, são muito menos exigentes em termos de desgaste cognitivo e emocional, requerendo muito menos persistência e perseverança da parte dos seus utilizadores que um jogo.
A propósito desta minha última declaração relativamente ao que distingue os processos de acesso do utilizador ao jogo do filme e livro, deixo-vos uma espécie de bónus a este artigo. A entrevista de Dará O' Brian sobre a sua frustração com a incapacidade de jogar os jogos até ao final. Esta entrevista apresentada com imagens dos jogos, ajuda-nos a perceber a dimensão dessa diferença e da exigência que esta forma de arte faz dos seus amantes.
Notas:
Nelson Zagalo é professor de media interativos na Universidade do Minho e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.