O que se passa com o Japão?
Uma análise à crise de criatividade nipónica.
Quando Phil Fish, criador de Fez, comentou que "os jogos japoneses modernos são uma porcaria", jogadores de todo o mundo não hesitaram em apontar-lhe o dedo. A afirmação até pode até ter sido um pouco agressiva mas não foi tão descabida quanto isso.
Já 2010 Kenji Inafune, criador de Megaman tinha dito que temia que a indústria dos videojogos japoneses desaparecesse completamente e, na altura, ninguém disse que estava errado.
Para qualquer jogador de consolas nascido nos anos 80, o Japão foi, durante a nossa infância e adolescência, um lugar mágico e distante que nos dava os melhores jogos do mundo.
Quando nos divertíamos com a Mega Drive e Super Nintendo, contavam-se pelos dedos os jogos ocidentais que havia lá por casa. Tirando Mortal Kombat e os títulos da EA Sports, eram poucos os jogos que não vinham do Japão. Nessa altura, até boa parte dos jogos da Disney eram feitos pela Capcom! Os ocidentais estavam mais virados para os PCs, mundo que sempre pouco significou para quem, tal como eu, respirava a cultura das consolas.
Com a chegada da PlayStation, Saturn e Nintendo 64 as coisas pouco mudaram. Wipeout, Grand Theft Auto, Tomb Raider, Crash Bandicoot ou os jogos da Rare ganharam terreno para os europeus e norte-americanos mas os japoneses trouxeram para a mesa nomes de peso como Tekken, Metal Gear Solid, Resident Evil ou Final Fantasy(série até então desconhecida dos europeus).
Foi só com a chegada da PlayStation 2, Xbox e Gamecube que a criatividade japonesa começou a abrandar. Novos IPs vindos do país do sol nascente não eram tão abundantes quanto nas gerações anteriores e Grand Theft Auto tornou-se o primeiro jogo ocidental mais vendido numa geração.
As consolas actuais só vieram confirmar uma situação que já muitos previam: os japoneses já não são os maiores do mundo no que toca a desenvolver jogos para consolas. Halo, Gears of War, Mass Effect, Elder Scrolls e, especialmente, Call of Duty conquistaram as carteiras e o tempo dos jogadores ocidentais, que entretanto se tornaram os maiores consumidores de jogos do planeta.
É certo que nesta geração não tivemos nas consolas domésticos jogos com o mesmo nível de criatividade e avanço no design como na geração passada aconteceu com Ico, Shadow of the Colossus, Resident Evil 4, Final Fantasy X ou Kingdom Hearts. No entanto, ainda há alguns jogos japoneses a serem bem feitos e aclamados, tais como Dark Souls, Ni No Kuni, Super Mario Galaxy; apenas são em muito menor quantidade do que eram no passado.
A sensação que temos nos dias que correm é de que, criativamente, o Japão já deu o que tinha a dar e os títulos actuais não passam de meras reciclagens - New Super Mario Bros., Munster Hunter, Pokémon, Animal Crossing - ou imitações baratas de títulos ocidentais -Resident Evil 6 ou Quantum Theory.
Apesar de a indústria no ocidente ter atingido a maturidade, não é de todo errado afirmar que a criatividade japonesa, pelo menos no que toca ao design de videojogos, está a atravessar uma forte crise.
Vamos viajar no tempo
Em 2002, dois anos depois de aparecer a PlayStation 2, o mercado japonês representava 50% da indústria dos videojogos. O Japão era incontestavelmente a pátria dos jogos e isso via-se na enorme influência que teve na nossa infância. Em 2010, o seu peso tinha baixado para 10% e, hoje em dia, ainda consegue ser menor. Como é que, em apenas 8 anos, o mercado japonês perdeu tanto terreno para o ocidente?
Além do crescimento dos mercados europeu e norte-americano, existem razões culturais e demográficas que nos ajudam a explicar este fenómeno.
O Japão tem a população mais envelhecida do mundo e esta não tem parado de crescer. São um público cada vez maior de não-jogadores. Além disso, tem também uma das taxas de natalidade mais baixas do planeta, ou seja, nascem muito poucos novos jogadores.
Como se não bastasse, existe um estigma social em relação a jogadores japoneses adultos, arrastando a média de idades dos jogadores para níveis inferiores aos 30 anos dos jogadores ocidentais. Este estranho fenómeno deve-se à rígida cultura empresarial do país. Manda a tradição que os empregados só devem ir para casa depois do patrão sair e, por isso, não é estranho um adulto trabalhar 13 horas por dia. Isto deixa-lhe menos tempo para dedicar à família e aos seus hobbies, incluindo jogos em consolas domésticas. Isto também ajuda a explicar a grande popularidade das portáteis no país(jogadas nas viagens para o trabalho), a quase inexistência de uma cultura de PC gaming e o enorme crescimento dos jogos para tablets, smartphones e redes sociais.
Outro problema que afecta a indústria dos jogos no Japão prende-se com a força do Yen, quase em paridade com o dólar(neste momento, $1 equivale a ¥91). Os títulos AAA são muito caros de produzir e, salvo raras excepções(como Dragon Quest) vendem mais unidades no estrangeiro.
O valor das vendas, quando convertido para Yenes, acaba por ser bastante inferior ao que o mesmo jogo geraria internamente. Por forma a dar a volta a esta situação, muitos empresas têm optado por produzir os seus jogos no ocidente onde a mão de obra é mais barata e igualmente qualificada. O exemplo mais recente desta prática é DmC, o 5º jogo da série Devil May Cry que até agora era produzida pela Capcom e que passou para as da Ninja Theory, uma empresa Inglesa.
"O lendário Itagaki, criador de Ninja Gaiden e Dead or Alive, que agora trabalha com empresas ocidentais, garante que o orçamento para um jogo no ocidente dá para 30 jogos no Japão."
Estas razões explicam o menor número de novas IPs AAA japonesas mas também estão próximas da crise de criatividade japonesa.
O sucesso ocidental criou nos japoneses a ilusão de uma perda de interesse do público europeu e norte-americano pelos seus jogos e isto tem-se traduzido numa óbvia ocidentalização dos seus produtos.
A ocidentalização de facto, como aconteceu com DmC, não me causa nenhum tipo de confusão. Há uma clara necessidade económica por trás disso e, como provou e muito bem a Ninja Theory, o trabalho acaba por ter bastante qualidade.
Bem mais grave considero o outro tipo de ocidentalização- a criativa. Olhando para os interesses dos jogadores estrangeiros, algumas empresas têm preferido aplicar nos seus IPs, alguns deles bastante estabelecidos, fórmulas claramente ocidentais, entrando em completa ruptura com as bases estabelecidas.
Quando o trabalho é bem feito resultam bons jogos. É o caso de Dragon's Dogma ou Demons Souls, dois novos IPs com fórmulas marcadametne ocidentais e que conquistaram crítica e jogadores em todo o mundo. Do lado oposto, temos aberrações como Quantum Theory, um shooter medíocre da Koei que tentou miseravelmente imitar Gears of War e que, por esta altura, quase todos já esquecemos.
Do lado das IPs gigantes o cenário tem sido ainda pior. Os grandes designers japoneses, à frente das grandes franchises abandonaram todos a sua casa-mãe(Sakaguchi cortou com a Square, Inafune e Shinji Mikami abandonaram a Capcom) e sua saída não tardou em reflectir-se numa mudança de mentalidade das empresas de onde saíram.
A ocidentalização tomou logo conta de Resident Evil. Se com o 5º jogo a série já tinha cortado as suas raízes de survival horror, para agradar mais ao público ocidental consumidor de shooters, o 6º capítulo voltou completamente as costas ao género que praticamente fundou. Uma série que começou por se inspirar em Alone in the Dark, vira-se agora para Gears of War.
Para os lados da Square Enix as coisas não são melhores. Talvez por ter assistido ao sucesso de Elder Scrolls e Knights of the Old Republic, a equipa criativa por trás de Final Fantasy XIII achou por bem dar menos importância a personagens e história e focar-se mais nos visuais. O problema é que os rpgs citados não descuram estes elementos- apenas os entregam de uma forma diferente do que é habitual nos JRPGs. Acabou por ser o Final Fantasy pior recebido pela crítica de que há memória.
Outra série emblemática que deu um salto a ocidente foi Front Mission. Evolved, a mais recente entrada na série, deixou de ser um jogo de estratégia para passar a ser um shooter. As críticas foram más e as vendas ainda piores. Temo que tenha sido a última vez que saiu um jogo de uma das minhas séries favoritas.
Hideo Kojima é um acérrimo defensor da abertura japonesa ao ocidente mas a verdade é que a série Metal Gear Solid sempre foi uma mistura bastante bem conseguida entre ocidente(na temática) e oriente(na cinemática).
Feliz ou infelizmente, esta tendência parece afectar apenas os jogos AAA. Os bons jogos japoneses continuam a sair mas estão longe dos televisores. Seguindo a tendência que os japoneses têm para as portáteis, a boa criatividade parece ter-se virado para aí. Pela primeira vez nos seus mais de 25 anos de história, Dragon Quest, a série de maior sucesso por aqueles lados, teve um capítulo principal numa consola portátil. E foi um grande jogo.
Novas IPs, tais como 999, Ghost Trick: Phantom Detective, The World Ends With You, Patapon ou LocoRoco são todas lançados em portáteis em vez de consolas domésticas. Se no ocidente prestássemos mais atenção a elas, não nos queixaríamos tanto do mercado japonês.
Será que as coisas vão mudar?
É difícil estar a apontar dedos à indústria japonesa quando os seus esforços dão bons frutos nas portáteis. Em relação aos títulos AAA, acho que vamos ter que aguentar a direcção que as coisas têm tomado a não ser que bons jogos marcadamente japoneses como Xenoblade, Ni No Kuni ou o novo Fire Emblem consigam alterar esta errada percepção de que os ocidentais não querem coisas "demasiado" japonesas.
Com uma indústria dominada por veteranos, Itagaki acha que aos jovens criadores japoneses falta coragem e que "precisam de estar dispostos a espetarem-se contra algo à sua frente quer as pessoas gostem ou não."
Se calhar foi mesmo esta a atitude que alegrou a minha infância com "Gunstar Heroes" ou "Zombies ate my Neighbors". Duvido que hoje em dia qualquer um deles chegasse a uma consola doméstica.