Okami HD - Análise
É lindo!
Vivemos um tempo em que as grandes editoras preferem a segurança do lucro ao risco da inovação e da criação de novas propriedades intelectuais. Isso está patente na produção mais acentuada de sequelas e números adjacentes ao título. Se nalguns casos encontramos regressos pontuais e menos regulares, noutras produções o hiato temporal não passa mais do que um ano. Isso não exclui a qualidade de muitos jogos que nos chegam em ritmo anual, até porque as produtoras procuram refrescar os conteúdos através de novas ideias e conceitos, proporcionando melhores e mais valiosas experiências.
Mas a propensão para o risco é menor. Basta ter em conta o desfecho da produção de Scalebound, uma nova propriedade desenvolvida por Hideki Kamiya da Platinum Games, relegada para o quadro dos jogos cancelados. Basta pensarmos no que são hoje produtoras como a Konami e Capcom, enquanto que não há muito tempo eram espelhos de criatividade. A criação do Clover Studio, formada por membros talentosos da Capcom visava a criação de novas produções, fora do âmbito das sequelas.
Desse estúdio formado por membros como Kamiya, Mikami e Inaba, sairam magníficas produções que ainda hoje brilham pela sua qualidade. Penso em Viewtiful Joe, Okami e God Hand, jogos plenos de estilo, arte e jogabilidade. Mas os chefes da Capcom não apreciaram os resultados financeiros e fecharam o estúdio, não dando azo a mais veleidades. Felizmente a Platinum Games funciona como uma espécie de último reduto desse esforço, constituída maioritariamente pelo pessoal que formou o Clover Studio.
O seu espírito irreverente e criativo mora em jogos como Wonderful 101, Bayonetta e até mesmo Madworld, mas há jogos que atingem um nível tão grande de qualidade e se tornam tão raros nos dias de hoje que adquirem a qualidade de intemporais. É o caso de Okami, que agora é lançado pela Capcom no formato HD 4K e por isso capaz de correr gloriosamente nos modernos televisores.
Okami é um dos poucos jogos que pela sua qualidade artística e criativa merece estar à nossa disposição hoje e amanhã, em qualquer sistema. Para não perdermos de vista a noção de beleza e do quão notável esta indústria é. Para nos lembrarmos de que grandes produtoras também são capazes de produzir jogos mágicos (quase divinos), desde que estejam dispostas a arriscar. Já houve uma grande dose de apoio e risco nestas produções. O voto em Okami HD vai para a Capcom mas é a assinatura de Hideki Kamiya e a designação do Clover Studio que recolhem os créditos. Okami HD é lindo. É eterno.
Poder jogá-lo em HD, desfrutar desta obra prima num moderno televisor, é uma oportunidade para não perdemos a noção do que é mais puro, dos traços artísticos que produzem uma história com séculos, passada no Japão feudal. Tão assinalável o alcance desta aventura e jornada épica se pensarmos que provém da mesma mente de um dos criadores de Resident Evil, o que comprova o talento de todos os envolvidos na produção desta obra prima.
Lançado originalmente em 2007, na PS2 e depois na Wii, Okami conheceu mais adiante um formato em alta definição para a PS3 e para o Windows. Chega agora à PS4 e Xbox One. Espero que chegue também à próxima geração de consolas. A arte e beleza que emanam deste título são tão grandes que nem a passagem do tempo revela as limitações. Até pelo contrário, é um jogo que fica ainda mais bonito, divinal e glorioso ao entrar na alta definição. Isso deve-se ao seu belo sentido artístico, impondo-se à produção gráfica. Okami foi lançado há dez anos, mas podia ser este o formato original que poucos dariam pela diferença.
E nele vemos tanto da cultura e herança nipónicas que os fãs destas produções depressa ficam maravilhados. Okami merece ser jogado hoje e sempre. Hideki Kamiya, o seu criador, trabalhou arduamente na produção. Não só foi ele que concebeu a história como ainda assumiu o cargo de director. O resultado é esplêndido.
Kamiya foi ao âmago das lendas e do misticismo que povoa o Japão feudal, recuperando o poder divino. O sol como a origem, o divino encarnado numa loba de nome Amaterasu e protagonista desta aventura. A apresentação é notável e nenhum pormenor foi escolhido ao acaso. A história é contada da direita para a esquerda, como num scroll (no Japão é conhecido como Kakejiku), com desenhos pintados à mão, através das técnicas de pintura. Desenrolamos avidamente cada porção da história daquela loba, uma lenda que permaneceu intocável por 100 anos. Regressa agora, com o apoio de Issun, uma achega de comédia e toque vibrante, uma pequena criatura crucial no desenvolvimento das habilidades e dos poderes divinos que a loba terá de recolher. O mais incrível, após entrarmos no jogo é a constatação de que todos os cenários, personagens e construções estão como que meticulosamente pintados à mão, uma estética que se apura nos efeitos especiais, conjugando cores e efeitos de forma verdadeiramente incrível. Assinalável a forma como Kamiya conduz a produção da lenda, que tem um tanto de divinal na forma como é apresentado o sol e no que representa para o país, ao ponto de figurar na bandeira (Japão, país do sol nascente), até aos inimigos que prostrados depois do combate com Amaterasu se transformam num corpo de flores, pintando a floresta. Não é exagero nenhum pensarmos na poesia que Kamiya criou. É constante, invadindo o nosso pensamento, conjugando arte com espaço e elementos tradicionais dos videojogos.
Por ser também um jogo especial, na forma como aprendemos a utilizar os 15 poderes celestiais, através de processos de pintura (simples e eficazes - não terão que fazer desenhos elaborados, descansem), as primeiras horas constituem uma larga fase de aprendizagem, mas que se faz ao sabor da criatividade e da veia artística dos produtores. Não é só a capacidade de imaginação na criação da obra, é a coerência e organização existentes que lançam ao mesmo tempo o desafio. A aplicação dos poderes é simples, basta pressionar o R1 para pausar o ecrã, pintando com o analógico o ponto ou áreas relevantes, através da espada. As possibilidades são enormes e depressa a escala do desafio se amplia, mas há sempre uma beleza e um significado em cada contexto que nem as pequenas pausas na acção beliscam a cadência.
Incrível como a história se cruza de forma perfeita com a jogabilidade. O objectivo passa por dar vida, por exemplo, a árvores secas (a natureza assume um papel preponderante como criação do divino) e transformar vilas imersas na escuridão e os seus habitantes condicionados em espaços maravilhosos, levando a felicidade às pessoas (as crianças passam a brincar) e o sol firme, desenhado através de um círculo, empresta a claridade que torna tudo tão útil.
A obtenção de mais poderes celestiais permite à loba interagir perfeitamente com os quatro elementos da natureza (água, fogo, terra e ar). Fabricar pontes, criar passagens celestiais, tudo o que vemos num cenário pode ser utilizado de alguma forma, através de um grau específico de interacção. O mesmo sucede na luta com os inimigos, criaturas projectadas constantemente e que nos levam a encetar um combate numa espécie de arena. Os poderes de Amaterasu evoluem e melhoram, como num jogo de role play. Há uma certa proximidade na projecção da aventura, em termos de design, com as campanhas de Link em Zelda, embora sejam conceitos distintos, sendo nuclear a ligação ao Japão feudal e por consequência às lendas, mitos e histórias ligados à História do Japão. Podemos ver de certo modo em Wonderful 101 um pouco do conceito empregue nos desenhos para a obtenção não neste caso das armas, mas dos efeitos especiais.
Dando destaque à natureza e ao que nos rodeia, Okami é notável também por isso, por nos levar a uma viagem sobre o fabuloso, às coisas mais simples que temos diante de nós, tudo sob o olhar de uma protagonista invulgar, a loba Amaterasu. Belíssimo em termos artísticos e amplo em design e mecânicas, especialmente o sistema de pintura (conexo com a direcção artística), este é um daqueles jogos que fica como o que de melhor pode produzir esta indústria quando as editoras aceitam o risco e colocam o talento à frente da força dos números.