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Os videojogos podem criar assassinos?

O perfil, a empatia e os jogos.

Vou escrever mais uma vez sobre este assunto, procurando ser o mais claro possível, por forma a responder à questão que está em título, e que sintetiza um lote de questões que me têm chegado a propósito dos artigos que venho escrevendo para a Eurogamer.

A questão faz sentido, e é importante que a possamos debater abertamente. Na última década, de cada vez que existe um ataque a uma escola, ou um ataque em massa, os videojogos surgem à cabeça como potenciais causadores. Como o elemento da paisagem dos media, que mais pode ter contribuído para levar aquele adolescente ou adulto a cometer tamanho barbaridade. Estas acusações aparecem não raras vezes associadas a estudos que alegadamente demonstram a ligação. Estudos que dizem que as pessoas ficam com maior predisposição para a violência e agressão depois de jogar. Estudos que dizem que os videojogos provocam uma dessensibilização e consequentemente uma predisposição para a agressão. Estudos que demonstram que os videojogos são mais efectivos na estimulação de ações de agressão do que o cinema ou os livros. Ou seja, existe uma grande quantidade de estudos que servem para suportar quase tudo o que se possa imaginar na ligação entre violência e os videojogos. Por outro lado existem estudos contrários, em menor número mas existem.

E porque são os estudos em defesa da não ligação entre a violência e os videojogos em menor em número? A principal razão prende-se com o financiamento e interesse público nos estudos. Existe uma maior apetência por estudos que demonstrem a ligação, do que por estudos que não demonstrem a ligação. Mais, em termos científicos é muito menos compensador emocionalmente para o investigador, realizar todo um estudo e chegar ao final sem encontrar qualquer prova conclusiva de ligação, do que encontrar algum tipo de evidência, nem que seja mínima. Isto porque se não se encontrou nada, pode querer dizer que não se procurou suficientemente bem, que faltou analisar algo, que o número de sujeitos estudados pode ter sido insuficiente, que o tempo de exposição pode ter sido curto, etc., etc.

Figura 1

Por outro lado, temos tido algumas pessoas como Chris Fergusson, que se têm dedicado à meta-análise do assunto. Ou seja, a examinar os testes e os estudos que se têm debruçado sobre o assunto. No seu mais recente artigo sobre o assunto, "Violent Video Games and the Supreme Court. Lessons for the Scientific Community" [1], realiza um extenso trabalho de levantamento e análise do que tem sido feito, apontando problemas, erros, e deficiências em praticamente todos os estudos que demonstram ligações claras entre o comportamento violento e o ato de jogar videojogos. Para além disso, uma das mais fortes evidências da ausência desta conexão, passa pelo facto de ao longo dos últimos 40 anos, em que os jogos não pararam de aumentar de popularidade e de vendas, a violência não parou de decrescer, como se pode ver no gráfico (Figura 1 [1]).

"...ao longo dos últimos 40 anos, em que os jogos não pararam de aumentar de popularidade e de vendas, a violência não parou de decrescer."

Para além disso, qualquer estudo sobre a violência, não pode de forma alguma ser situada e reportar-se a um único foco ou causa. A violência é assumida pela psicologia como fruto da interação entre vários factores de ordem genética e ambiental [2]. Aliás os estudos que se dedicam a análise dos perfis dos assassinos em massa, desprezam e ridicularizam mesmo qualquer ligação aos videojogos, apesar de reconhecerem que a sociedade em geral estabelece essas ligações [3, 4]. Num desses estudos, feito sobre uma dezena de sujeitos que cometeram assassínios em massa em escolas, Langman [3], encontrou três grandes perfis: traumatizados, psicóticos, e psicopatas. No caso dos traumatizados, estes apresentavam em comum o facto de terem sido abusados fisicamente em casa, e sexualmente fora de casa, assim como serem filhos de pais alcoólicos e com problemas de droga. No caso dos psicóticos, todos eles eram provenientes de famílias saudáveis, sem qualquer historial de abusos, apresentando vários distúrbios do espectro da esquizofrenia, incluindo transtorno de personalidade esquizóide. No caso dos psicopatas, nenhum era psicótico, nem tinham sofrido qualquer tipo de abuso, demonstravam antes comportamentos narcisistas, sentimento de superioridade e grandiosidade, com a ideia de que as regras e leis não se aplicavam a eles, e por isso com historial prévio de problemas com a justiça. Demonstravam ainda ausência de empatia, incapacidade de arrependimento, e comportamentos sádicos como o mau trato violento de animais.

Ora olhando para estes perfis, e para os padrões que os caracterizam, podemos facilmente depreender que os videojogos, per se, não conseguem de forma alguma gerar este tipo de pessoas. Tirando o caso dos traumatizados e psicóticos que representam uma forte maioria dos indivíduos que cometem este tipo de crimes, mesmo que nos concentremos apenas sobre os psicopatas, é praticamente impossível um videojogo poder estimular num indivíduo este tipo de comportamentos. Não existe qualquer forma de um videojogo poder estimular num indivíduo a inibição de empatia. A empatia é um mecanismo biológico responsável por nos fazer compreender o outro, nomeadamente compreender quando este está em sofrimento, porque o mecanismo ativa em nós sensações e emoções muito próximas daquilo que o outro está a sentir . Ou seja, quando vejo alguém chorar, ou gritar de dor, se eu tiver o meu mecanismo de empatia a funcionar normalmente, começo de imediato a sentir a tristeza ou dor daquela pessoa, ao ponto de me levar a dirigir para ela para a tentar ajudar [5].

Ora nenhum videojogo tem poder para eliminar este mecanismo, não porque ele é biológico, mas porque as formas de inibição que conhecemos não são compatíveis com o tipo de relação que se estabelece com um videojogo. Ou seja, a ausência de empatia, só pode acontecer de duas formas: por um problema do foro biológico, em que ocorra um problema genético, ou ocorra algum acidente que provoque alterações ao nível cerebral. Ou por um problema surgido a partir de uma situação de abuso grave, ainda na fase de crescimento, que promova uma situação de stress continuada e extremamente violenta, ao ponto de impedir que este mecanismo se desenvolva no sujeito de forma regular. E por isso a resposta à pergunta em título tem de ser, simplesmente, não.

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