Porquê Jogar a Realidade
Os videojogos como base para um mundo melhor.
Paul Gee lançou-nos uma questão intrigante: "Porque não testamos uma pessoa que jogou Halo e chegou ao final para saber se esta sabe jogar, mas testamos alguém que andou 12 semanas a aprender Álgebra?" Para Gee isto tem apenas uma explicação, é que no caso do jogo assumimos que se a pessoa chegou ao final foi porque percebeu corretamente o que o jogo lhe pedia, de outro modo não teria conseguido lá chegar. Ou seja, estamos a dizer que acreditamos mais na aprendizagem realizada em Halo do que na aprendizagem construída ao longo de 12 semanas de aulas de disciplina de matemática.
Noutro caso também recente o professor Lee Sheldon começou a avaliar os seus alunos na Universidade de Indiana nos Estados Unidos através do sistema de pontuação do World of Warcraft, XP ("experience points"). Os estudantes começam o semestre com o nível um, que corresponde a zero XP, e à nota mínima. Depois ganham pontos completando missões e lutando contra monstros, ou seja, fazendo apresentações, respondendo a perguntas, e entregando projetos. Ainda e seguindo a jogabilidade em WoW, os estudantes são agrupados em "guildas" e levados a completar missões (os projetos) a solo, em grupo, assim como elementos escolhidos por outras equipas.
O que estes dois casos nos colocam a pensar é que provavelmente devemos começar a ponderar seriamente sobre a possibilidade de transportar as ideias do design de videojogos e os modos de ação e atuação dos jogadores dos videojogos para o mundo real. Não apenas para o ensino mas para as atividades que requerem de nós persistência, ou envolvimento, ou motivação, ou concentração. Ora foi isto mesmo que Jesse Schell nos veio dizer numa palestra dada no ano passado e que criou um buzz enorme ao anunciar que estamos a um passo de tornar o mundo inteiro num grande jogo.
Schell disse que as conquistas e incentivos que nos levaram a jogar compulsivamente os jogos do Facebook (ex. Farmville) serão em breve construídas sobre tudo aquilo que nos rodeia. A nossa escova de dentes, poderá dar-nos 10 pontos por cada lavagem dos dentes de manhã, e mais alguns ainda caso lavemos durante o tempo correto. Poderemos conseguir ainda mais pontos se lavarmos todas as manhãs da semana. Noutro campo as caixas de cereais podem vir equipadas com sensores que nos atribuem pontos cada vez que os tomamos pela manhã. Podemos levar isto mais longe e envolver as câmaras municipais que podem atribuir pontos se apanharmos o autocarro em vez do carro para ir para a escola ou para ir trabalhar, ou ainda se fizermos a reciclagem de forma correta.
No fundo, o que estamos aqui a falar é de um processo massivo de "gamification" das regras da sociedade. Um processo que se define pelo uso de elementos de jogo, de mecânicas de gameplay, em atividades do mundo real, não relacionadas com jogos e suportadas por redes sociais. Jane McGonigal tocou neste assunto com o desenvolvimento de jogos ARG, como "World without Oil" (2007). Além dela em 2008 também Zicherman tinha começado por falar de um processo semelhante dando-lhe o nome de "funware", ou seja, "software divertido". Mas a sua abordagem ao contrário da lógica abrangente apresentada por Schell prendia-se, apenas e só, com questões de marketing e publicidade, ou seja como vender mais produtos fazendo uso de lógicas de jogo.
"Gamification é uma vontade de alterar o comportamento do jogador, ou de forma simples, persuadir a pessoa a mudar."
O que está então no cerne de um processo de "gamification" é uma vontade de alterar o comportamento do jogador, ou de forma simples, persuadir a pessoa a mudar. Se olharmos para trás podemos ver que o modelo não é completamente novo, e que existem atividades que fazem uso de técnicas semelhantes. Uma diferença é que nessa altura as pessoas não estavam conscientes do facto de estarem a jogar. O mais reconhecido destes processos, são os "programas de fidelização" de clientes, tais como as milhas oferecidas pelas companhias aéreas aos seus passageiros frequentes, ou os cartões de pontos dos supermercados.
Estas estratégias têm servido as empresas no sentido de persuadir os seus clientes a voltarem para comprar mais. Mas em termos de "gamification" estes são processos algo simplistas, porque basicamente se limitam a fazer uso de uma mecânica de jogo: a pontuação. Quanto mais gastarem, mais pontos obtém, e mais recompensas recebem. Pode ser interessante para as empresas, no sentido de gerar lucro fácil e rápido, mas a médio prazo torna-se cansativo para os consumidores por falta de diversidade.
Por outro lado e mais recentemente com o boom das redes sociais, empresas como a Nike, apostaram forte neste modelo procurando ir além da mera pontuação. Projetos como o Nike+ fazem uso de sapatilhas equipadas com sensores, conectadas a iPods que por sua vez se ligam a uma rede social via internet. Nesta rede social todos os amigos do utilizador do serviço podem ver as conquistas conseguidas pela pessoa, tais como saber quantos quilómetros correu, e assim criar uma espécie de pressão social de grupo para que este cumpra os seus objectivos. Este é um processo que se aproxima já bastante da "gamification", não existem apenas pontos, mas objectivos, metas e conquistas estabelecidas que ajudam a gerar uma diferença no estatuto dentro da rede social. A rede social neste caso pode funcionar como o treinador pessoal, ou melhor dizendo comunitário, deste e de todos os desportistas daquela rede.
Para muitos de nós, os nossos amigos e a nossa família são quem mais ouvimos para confirmar ou reprovar algo, são os que procuramos para pedir apoio, os que nos inspiram e são as nossas principais influências quando temos que tomar decisões. Se olharmos para uma escala maior, com milhões de pessoas, podemos começar a pensar sobre como cada uma destas redes sociais fazem parte de uma rede maior, e consequentemente que o resultado da "gamificação" pode conduzir à construção de uma sociedade no mundo real mais aberta à participação e à partilha. Ou seja, estamos a dizer que os videojogos podem, à sua maneira, ajudar a construir um mundo melhor.
Nelson Zagalo é professor de media interativos na Universidade do Minho e presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos, e tem uma coluna quinzenal na Eurogamer Portugal, abordando a arte e ciência dos videojogos.