Returnal review - Rápido, explosivo, impiedoso
Um jogo que vai colocar à prova as tuas habilidades.
Na passada década o género dos roguelikes esteve sempre muito associado aos estúdios independentes e pequenas produtoras, mas tem registado uma evolução surpreendente. A minha primeira experiência com um jogo deste género foi com a versão original de The Bindind of Isaac, mas desde então que os roguelikes se foram tornando mais comuns, refinados e explorando diferentes conceitos. Uma prova desta evolução é Hades da Supergiant Games. Os prémios de Game of the Year estão longe de ser unânimes, mas o roguelike baseado na mitologia grega já soma uma quantidade respeitável destes prémios, o que é impressionante se pensarmos que foi lançado no mesmo ano que The Last of Us: Parte II, Ghost of Tsushima e Animal Crossing: New Horizons.
Se até agora este género sempre esteve associado a pequenas / médias produções, o que acontece quando se desenvolve um roguelike de qualidade AAA? A Housemarque é o primeiro estúdio do mundo a realizar esse teste. Returnal é uma ambiciosa aposta da Sony e do estúdio finlandês, pegando num género de nicho para o levar para as massas. Quando se fala em exclusivos PlayStation, os primeiros nomes a surgir são títulos como God of War, Uncharted, The Last of Us, Spider-Man e Horizon: Zero Dawn. Returnal é um jogo completamente diferente do que a audiência PlayStation está habituada, conseguindo ser tão ou mais impiedoso do que Bloodborne (ou qualquer jogo da saga Souls).
Morreste? Recomeça do princípio
Um moderado ou elevado nível de desafio já é intrínseco ao próprio género. Se nunca jogaste um roguelike, sempre que morres regressas ao início do jogo, ou seja, precisas de chegar ao fim sem morrer. Returnal não foge a esta regra. A ideia é que o jogador vai melhorar a sua habilidade em cada tentativa, mas também existe um factor de sorte associado: as diferentes salas e distribuição de itens são aleatórias. Nunca sabes o que vais encontrar na tentativa seguinte. A habilidade do jogador é um factor importante, mas os itens também o são, havendo tentativas em que sofres mais do que outras.
Para quem já jogou algum Roguelike, Returnal será uma experiência de familiarização rápida. Existem diferentes categorias de itens, nomeadamente aqueles que são consumíveis (e que desaparecem depois da utilização), os artefactos, que garantem benefícios durante aquela tentativa (ou seja, desaparecem quando morres), e por fim os parasitas, umas criaturas tipo Facehugger (da saga Alien) que se agarram ao corpo de Selene e lhe garantem um benefício e um malefício. No início, Selene começa sempre com uma pistola básica, mas pode encontrar armas mais poderosas como caçadeiras, metralhadoras e outros tipos mais bizarros de armas (incluindo uma em que as balas ficam agarradas ao inimigo e dão choques durante algum tempo).
"Se nunca jogaste um roguelike, sempre que morres regressas ao início do jogo, ou seja, precisas de chegar ao fim sem morrer"
Um sistema interessante, e que recompensa a exploração de todas as salas, é a proficiência. A barra de proficiência começa sempre a zero, e vai aumentado à medida que derrotas inimigos. À medida que o nível da barra for subindo (nível 1, nível 2, nível 3 e por aí fora) é garantindo que a próxima arma que encontrares vai ter o nível correspondente à tua barra de proficiência (mas também pode ser mais elevado, embora nunca inferior). No geral, quanto maior for o nível da arma, melhor, se bem que nem sempre é assim devido aos perks associados à arma e ao disparo alternativo (que também são aleatórios, como muitas coisas no jogo).
Um roguelike que mantém o estilo da Housemarque
Um jogo difícil tem que ter uma jogabilidade polida, responsiva, sem espaço para falhas técnicas que possam comprometer o jogador. Returnal segue o ADN arcade da Housemarque na sua jogabilidade. É rápido, frenético, explosivo! Na prática, funciona como um jogo de tiros na terceira pessoa, mas claramente influenciado pelos shoot'em up. Os padrões de disparos dos inimigos expandem-se em grandes áreas, obrigando-te a ter excelentes reflexos (ou então a utilizar as barreiras naturais do cenário) para escapares a uma chuva de projéteis. Há inimigos mais tramados do que outros, mas a regra geral é que o jogo vai ficando cada vez mais complicado. Cada nova área (biomas) introduz novos tipos de inimigos com novos padrões de comportamentos e de disparos de projéteis.
A jogabilidade resume-se a três coisas: disparar, saltar e impulsionar-te para a frente (dash). Todas as armas tem dois modos de disparo: o normal (R2) e um modo mais poderoso (L2), que precisa de um tempo para ser recarregado depois de utilizado. O L1 está dedicado aos consumíveis, que podem ter efeitos como restaurar a vida, transformar os teus saltos em explosões, converter os projéteis inimigos em Obolitos (que podem ser trocados por itens em certas salas), entre outras coisas. Não existe um botão para recarregar a arma no sentido tradicional. O carregador vai-se enchendo se não atingires um certo limite, mas atingido o limite, precisas de carregar no R2 no momento certo para fazer um recarregamento rápido (tipo Gears of War).
"É rápido, frenético, explosivo! Na prática, funciona como um jogo de tiros na terceira pessoa, mas claramente influenciado pelos shoot'em up"
Seja o que estiver a acontecer no ecrã, vais sentir uma replicação no Dualsense através do feedback háptico. É a melhor (e mais intensa) implementação desta funcionalidade que já experimentei até agora. O feedback háptico até funciona para sentires quando tens de carregar no R2 para recarregar a arma, por exemplo. Quanto aos gatilhos adaptativos, existe um entrave a meio do L2. Este gatilho serve para apontar a arma com maior precisão, mas se pressionares a fundo, activas o disparo alternativo. No papel, pode parecer que este sistema vai causar disparos alternativos acidentais, mas na prática nunca me aconteceu porque sentes realmente uma resistência do L2.
Um planeta hostil, em que só os melhores vão conseguir escapar
Returnal decorre em Átropos, um planeta hóstil que prende Selene num ciclo constante de vida e morte. A própria história do jogo está emaranhada no modo de funcionamento de um roguelike. Ao explorarmos as salas aleatoriamente ordenadas de Átropos vamos encontrando os cadáveres de Selene, resultantes de outras tentativas falhadas. Se jogarem ligados à Internet, também vão encontrar os cadáveres de outros jogadores, que podem escolher vingar (enfrentando um inimigo difícil) para ganhar recursos extra. Os recursos extra podem parecer aliciantes, mas tens que levar em conta se o risco vale a pena. Returnal é um jogo muito difícil e podes morrer muito rapidamente. No início disse que é mais impiedoso do que Bloodborne ou qualquer jogo da From Software - não é que sejam jogos equiparáveis, são completamente diferentes - mas isto serve para te dar uma ideia do desafio que vais encontrar aqui.
As melhorias que podes desbloquear para o fato de astronauta de Selene não a tornam propriamente mais poderosa. Podes desbloquear espaço para mais consumíveis (neste momento tenho três espaços, inicialmente apenas tinha um) e itens permanentes que te permitem explorar áreas que inicialmente não conseguias. Depois, existem chaves de atalho para outras áreas - e só recebes estas chaves depois de derrotares o boss da área anterior. O jogo é altamente dependente da tua habilidade, e a forma de aumentar a tua barra de vida em cada tentativa mostra precisamente isso. Se a tua barra de vida estiver cheia, todos os itens de saúde que encontrares preenchem uma de três barras à esquerda da barra de vida: quando preencheres os três espaços, a tua barra de vida aumenta permanentemente durante aquela tentativa (quando morreres, volta ao estado normal). Se a tua vida não estiver cheia, nem todos os itens de saúde aumentam aquelas três barras. A maioria vai simplesmente restaurar a tua barra de vida. Por outras palavras, o jogo recompensa aqueles que conseguirem passar salas inteiras sem sofrerem um único golpe (não é fácil, acreditem).
"O jogo é altamente dependente da tua habilidade"
Pelo que percebi, para chegares ao verdadeiro final tens que passar o jogo pelo menos duas vezes. Na segunda ronda, a dificuldade aumenta bastante. Consegui passar a primeira vez sem muitos entraves, mas depois de 20 horas, ainda não consegui terminar pela segunda vez, apesar das muitas tentativas. Há que sublinhar que, diferente de outros roguelikes, cada tentativa de Returnal pode prolongar-se bastante. Da primeira vez que passei o jogo estive a jogar umas quatro ou cinco horas seguidas! O jogo peca por não ter um sistema de gravação, a única forma de garantir que preservas o teu progresso a meio de uma tentativa é colocar a consola em modo repouso. É uma funcionalidades simples, mas muito útil e que existe em outros roguelikes. Resta esperar que seja eventualmente adicionada.
Avarias no fato, itens malignos e uma economia difícil de gerir
Eu não disse que este era um planeta hostil? Não é propriamente seguro apanhar todos os itens que encontras. Quanto mais progredires, maior será a probabilidade de encontrares itens malignos. Os itens malignos têm uma probabilidade moderada ou elevada (depende) de causar uma avaria no fato se não forem purificados com éter. O problema é que o éter é um recurso um tanto raro e que serve para outras coisas, como desbloquear novos itens (inserindo éter num terminal de interacção na área inicial, onde está despenhada a tua nave) e até salvar-te da morte se ofereces éter suficiente numa plataforma de tecnologia alienígena. O risco está sempre presente em Returnal e a sua economia é extremamente difícil de gerir (ainda mais na segunda parte). Podes claro optar por apanhar itens malignos, mas quando o teu fato acumula avarias, os artefactos (que são itens que te concedem vantagens) vão sendo destruídos. Para corrigires as avarias tens que encontrar um consumível com esse efeito ou cumprir certas condições.
"Quanto mais progredires, maior será a probabilidade de encontrares itens malignos"
Returnal é um desafio constante. Nunca te vais sentir poderoso, nem confiante. Não é definitivamente uma experiência para desfrutar casualmente. Acho que é importante sublinhar isto. A progressão é difícil e podes sentir que a aleatoriedade é um estalo na tua cara. Se estás prestes a morrer e achas que na próxima sala vais encontrar um item para recuperar a vida, desengana-te: provavelmente não vai acontecer. Há que ter paciência, ainda mais quando podes facilmente perder uma ou duas horas a jogar, apenas para voltar ao início praticamente de mãos a abanar. Returnal é um jogo difícil até dentro dos padrões dos roguelikes. Os jogos da Housemarque sempre foram desafiantes, mas este cruzamento com o género Roguelike supera qualquer coisa que já tenha jogado. Acho que é um dos jogos mais difíceis que já joguei.
Como é contada a história?
A história de Returnal progride de forma irregular. Uma das salas que eventualmente encontras em Átropos tem uma casa, que às vezes tem a porta desbloqueada, outras vezes tem a porta bloqueada e não podes entrar. Quando podes entrar, a câmera troca para a primeira pessoa e permite-te interagir com diferentes objectos da casa. Cada visita à casa é diferente, com acontecimentos cada vez mais bizarros. Selene tem visões de um astronauta e de uma criatura gigante com tentáculos. A história não é directa, é enigmática e, francamente, ainda não juntei todas as peças (acredito que seja necessário terminar a segunda vez para perceber tudo). Há uma mistura de vários elementos do Dark Sci-Fi: criaturas estranhas (com muitos, muitos tentáculos!!), uma civilização extraterrestre que desapareceu (será que desapareceu mesmo?), viagens no tempo, e portais para outras áreas.
Apesar da existência de uma narrativa, não é propriamente o motivo principal para adquirir Returnal. Embora a narrativa seja um complemento interessante ao pacote, não é um daqueles jogos em que compras para desfrutar da história. Este é um jogo para quem gosta de ser desafiado. É um roguelike com grande orçamento e que por isso alcança coisas que os outros jogos do seu género não alcançam: uma qualidade visual de topo, com os melhores efeitos de partículas que vais testemunhar num jogo da PlayStation (até agora, pelo menos), áudio direccional estupendo (joga com headphones) e loadings que duram pouco mais de 1 segundo. A housemarque atingiu precisamente aquilo que desejada com Returnal: um roguelike de qualidade AAA, que preserva na jogabilidade o seu ADN arcade e desafiante. O único senão é que, parece-me, que muitos não vão estar preparados este nível de dificuldade.
O filho endiabrado de um roguelike com inferno de balas
Returnal é um jogo bastante diferente daquilo que habitualmente encontras no catálogo da PlayStation. É surpreendente que a Sony tenha investido em algo tão arriscado para o mercado das massas. Ainda que não seja perfeito, há muito para se gostar. E é um facto que quero sempre voltar ao jogo, apesar das coças repetidas. Do que joguei, parece-me que algumas armas precisam de ajustes e que as caçadeiras são de longe a melhor arma (mesmo às vezes estando a nível inferior). Também gostava que a câmera estivesse mais afastada da personagem (ainda que seja bonito ver o detalhado fato de Selene) porque quando estás de costas é impossível reagir a tempo aos muitos padrões das chuvas de balas. Quanto à escassez de Éter, parece-me que a Housemarque quer encorajar-te a participar no desafio diário (que tem parâmetros pré-definidos). A recompensa por completares o desafio são 5 unidades de Éter. Além disso, o desafio diário é a única forma de te comparares com outros jogadores através da pontuação.
Se gostas de roguelikes, Returnal é um no-brainer. É uma combinação única de roguelike e jogos arcade com chuva de balas. O conceito da Housemarque era ambicioso e ultimamente conseguiram alcançar aquilo que pretendiam. Há qualidade, muita até, mas não é um jogo que recomende universalmente. Nem todos vão ter a paciência e perseverança para este jogo. Não quero assustar ninguém, apenas quero que compreendam a experiência para não se sentirem defraudados.
Prós: | Contras: |
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