Shovel Knight - Análise
Pazadas de 8-bits.
A era 8-bit é guardada especialmente na memória daqueles que puderam experimentar algumas das suas mais impressionantes produções, muitas delas anteriores aos anos noventa. Pelo poder de imaginação que os jogos proporcionavam, pelos bits e blips ressonantes e por de alguma maneira terem aberto caminho e vias de exploração ao que é a indústria contemporânea. O contributo deixado por muitos produtores e editoras, a partir de plataformas computorizadas como o Commodore 64 e consolas como a NES, foi decisivo do ponto de vista da criação do jogo como desafio mas também como tentativa de definição de um conceito de "design", especialmente interactivo, enigmático e rebuscado. O avanço tecnológico impôs um inevitável afastamento sobre esses mundos pixelizados, cintilantes e mágicos, apresentando em alternativa um cada vez maior realismo. Talvez movidos por esse fascínio de outrora e à procura de algo capaz de extravasar a arte de uma capa de jogo e temperado com os condimentos dos heróis das séries animadas, do cinema e das aventuras, os coleccionadores ainda encontram nesta geração um indisputado ponto de convívio.
Sendo certo que muitas das editoras e marcas que contribuíram para o desenvolvimento e impacto deixado pela era 8-bit deixaram definitivamente esse estaleiro, só os fãs acérrimos desse tempo, que cresceram a jogar alguns dos mais impressionantes jogos, a ele voltam, já como produtores, independentes e por vezes com poucos recursos, obstinados em tributar e homenagear as suas melhores experiências. O lançamento das duas versões de NES Remix é das poucas excepções entre as grandes editoras: a Nintendo a reinventar o seu passado, a disposição dos menos atentos e saudosistas. E se pensar em 8-bit da Nintendo é sinónimo de Super Mario Bros, The Legend of Zelda, Metroid, Kid Icarus e Excitebike, há quem não deixe de evocar outras produções como Contra, Akumajou Special: Boku Dracula-kun, Hitler no Fukkatsu, Mega Man e tantos outros.
Foi a pensar nesse extenso e vasto catálogo de jogos da NES que a californiana Yacht Club Games abriu em Março de 2013 uma campanha no Kickstarter, solicitando 75 mil dólares em fundos para entregar aos jogadores uma "carta de amor" da era 8-bit. O resultado ultrapassou o pedido e só parou diante de uns brutais 300 mil dólares, colheita mais que suficiente para conteúdos adicionais à obra, assim como versões para as mais diferentes plataformas, especialmente as máquinas da Nintendo, a Wii U e 3DS, para as quais o jogo acaba de chegar.
Embora com um vasto conjunto de produções remasterizadas pela WayForward, Shovel Knight é um jogo original, um 2D "side scroller" de plataformas, muita acção e aventura, em formato tanto horizontal como vertical e inspirado nos grandes jogos editados para a NES. Não se crie no entanto a ideia de que este é um jogo clone. Embora o "design", som e gráficos sejam marcadamente 8-bits, existem muitas melhorias, nomeadamente uma extensão da tela, compatível com o formato "wide" dos televisores, assim como da 3DS, sonoridades mais avançadas e diferenciadas, e uma paleta de cores mais dilatada. Além disso o jogo recupera muitos elementos, sistemas e pontos de jogabilidade típicos de algumas experiências da época que homenageia, mas também ostenta um cunho próprio, as suas ideias e algumas referências dos jogos actuais. Por isso é que Shovel Knight impressiona e deixa qualquer fã dessa época 8-bit seduzido com tanto valor. Este não é apenas um "remaster" ou uma "recuperação", é uma verdadeira carta de amor, reveladora de um tomo de ideias organizadas para o jogo e uma produção exímia, capaz de desafio árduo, exigente, como era habitual nessa época.
As evocações que fazemos ao jogar Shovel Knight podem ir do mais clássico ao fino contemporâneo, desde Ducktales a Dark Souls. Há elementos a sobressair de uma multitude de jogos, especialmente o clássico da Capcom quando usamos a pá como se fosse um "pogo", capaz de causar danos no inimigo ao saltar sobre ele, e de ao mesmo tempo projectar o cavaleiro nas alturas, dando-lhe uma aberta para plataformas mais elevadas ou afastadas. Mas essa pá também é segurada como uma espada e esse é o elemento humorístico da cena, porque Shovel Knight não é um cavaleiro medonho ou hercúleo. Quando visita a vila onde encontra mercadores e toda uma espécie de contactos habilitados a oferecer-lhe relíquias, poções, armaduras e refeições que para além de regenerarem o seu estado de saúde ainda lhe aumentam a sua resistência, não parece tão feroz, grave e possante, não faltando até quem o troce devido à sua escassa estatura. Mesmo assim vale-se da sua grande agilidade e da sua parceira pá para efectuar golpes horizontais como quem tem em mãos uma espada, sem medo de enfrentar "bosses" temíveis e outras criaturas mordazes. Pintada de azul, a armadura raramente se confunde com o cenário e por vezes mais parece que temos um Mega Man inspirado numa personagem de Dark Souls.
O encontro com os "bosses" de fim de nível define bem a tendência do jogo para surpreender o jogador. Há algo de especial no oponente: os movimentos, os ataques, a transformação, as mudanças no cenário. Embora a nossa confiança nos ataques e desvios de Shovel Knight possam servir de argumentos válidos, enfrentar um adversário imprevisível, voraz e poderoso deixa-nos a experimentar algumas soluções até descobrir a melhor forma de o vencer. Existem oito "bosses" para lidar, todos da "The Order of No Quarter, propagadores do medo num mundo que Shovel e Shield conheciam como propício para a caça de tesouros. Shovel Knight é um jogo difícil, embora não tão punitivo como um Mega Man. Os níveis são habitualmente longos, mas com uma mão cheia de "chekpoints", pontos intermédios que gravam a posição e permitem continuar a partir dali mesmo que à frente a barra de saúde fique reduzida a zero.
O mapa mundo por onde circula Shovel Knight bebe inspiração em Super Mario Bros. 3. O avanço entre áreas previamente inacessíveis só é permitido após um combate vitorioso. Alguns bosses regressam a pontos intermédios, implicando novas batalhas e eventualmente a perda de pecúlio acumulado caso a batalha não corra de feição. A acumulação de tesouros como fonte de moeda, permite ao cavaleiro adquirir objectos que ampliam e diversificam o seu leque de ataques, como também pode encontrar armaduras e protecções avançadas. No entanto, sempre que perde uma vida, saquinhos de moeda gravitam no lugar do corpo, à espera de serem recuperados. Mas se perderem uma vida no trajecto, o pecúlio anterior é perdido definitivamente, causando uma perda efectiva de tesouros.
A interacção dentro das vilas com os diversos npc's que por lá circulam, emaranhados nas suas vidas e dispostos a vaticinar sobre a demanda do Shovel Knight, lembra imediatamente a interacção em Zelda II: The Adventure of Link. Mas aqui os diálogos são mais humorísticos e há itens a descobrir, começando pelos telhados onde podemos encontrar receitas e melodias que podemos entregar a um bardo mas também refeições, entre outros serviços e ofertas relevantes a troco de somas monetárias nas caves de uma taberna. Shovel Knight não sobe de nível como num jogo de "role play". Apenas a possibilidade de equipar certos itens que consomem pontos de magia. Existem contudo imensas "relics" que podemos comprar, destinadas a serem usadas numa batalha decisiva. O acesso ao ecrã táctil garante uma rápida selecção da "relic" pretendida.
Os níveis oferecem temáticas algo recorrentes: secções montanhosas, prolongamentos subaquáticos, territórios isolados por autênticos nevões, entre outros, deixando funcionar o nosso imaginário sobre o guardião que nos aguarda. Já a construção dos níveis é impressionante. O percurso está longe de ser um trajecto fechado. Há inúmeras saídas, passíveis de exploração, tanto em linha horizontal como vertical. Além disso o jogo introduz as mecânicas e o seu modo de funcionamento de forma gradual, sem manuais interactivos e explicações intrusivas: o jogador aprende enquanto joga, sem intromissões, sem explicações. A variedade de inimigos e seus movimentos é colossal. Basta um par de níveis para se perceber que cada secção é totalmente distinta da outra. Até as superfícies rochosas que vamos quebrando diferem, nalguns territórios mais macias, como se fossem feitas de areia. Existem imensos tesouros escondidos e pequenos montes de terra de onde extraímos diamantes e outras raridades, às pazadas.
O grafismo tipicamente 8-bit supera algumas convenções. Mesmo com uma arte pixelizada, há mais cores, contrastes, sombras e pequenos pormenores que dificilmente poderiam ser incluídos num cartucho para a NES. Este extra de produção torna realmente o jogo mais apelativo, sem diluir a identidade e modelo gráfico que pretende homenagear. Do mesmo modo a banda sonora, composta por Jake Kaufman acrescenta empolgantes temas e ritmos muito assertivos, compatibilizando-se muito bem com o desempenho do nosso protagonista, prestando também um forte tributo aos "chiptunes" clássicos.
Há um inimigo que se refugia num amplo escudo e que se defende arduamente das nossas investidas, cobrindo-se e defendendo-se quando tentamos aplicar um golpe aéreo através do efeito pogo, sendo atingido só por uma fresta, assim que ludibriamos o seu esquema defensivo. Só depois de três ou quatro golpes bem aplicados o levamos de vencida. Este é apenas um exemplo do trabalho meticuloso e excelente desempenho levado a cabo pela Yacht Club Games neste magnífico jogo que é realmente mais do que uma carta de amor aos fãs da geração 8-bit. Pode assentar em alguns modelos e sistemas clássicos, e contemporâneos, mas é uma produção organizada, de acção e desafios crepitantes e com uma surpreendente direcção artística. Qualquer amante da época 8-bit não deixará de dar por muito bem empregue o tempo passado com o jogo. Um dos melhores do ano.