The Last of Us: Part 2 review - Quebrar o ciclo
Naughty Dog entrega uma poderosa história.
As narrativas têm uma tendência natural para apresentar o mundo e as suas personagens em extremos opostos, em que o papel e a natureza de cada coisa é bem delineado e imediatamente perceptível. Basta olhar para a história dos livros, do cinema e dos videojogos que o desenvolvimento narrativo de uma grande maioria das obras assenta em construções básicas, familiares e que são confortáveis para a audiência. Não é por acaso que as bandas desenhadas de super-heróis, cujas adaptações tiveram nos últimos anos uma proliferação bombástica no cinema, têm tanto sucesso e ressoam muito facilmente com as massas. São histórias fantásticas, do bem contra mal, do herói contra um vilão, em que o primeiro é nobre e justo na sua conduta.
Com The Last of Us: Part 2, a Naughty Dog quis ir mais longe na construção da sua narrativa, descartando os mesmos princípios que anteriormente transformaram as suas propriedades em grandes sucessos. Basta olhar para a saga Uncharted, em que Nathan Drake é sempre apresentado como o herói, apesar de ao longo de quatro jogos (ou cinco, se quiseres incluir o jogo da PS Vita) tirar a vida a centenas ou milhares de mercenários e soldados. Provavelmente nunca pensaste nisto, mas há vários exemplos de jogos que sofrem de dissonância narrativa, em que aquilo que estás a fazer enquanto jogas entra em conflito com a história. Como é que Nathan Drake pode ser um tipo bom se mata centenas ou milhares só para encontrar um tesouro primeiro? É uma questão complicada para um jogo que, ultimamente, foi desenhado para entreter e não para responder a questões como esta.
Esta sequela é diferente de tudo aquilo que já sentiste num jogo da Naughty Dog. A ideia não é apresentar heróis nem vilões, nem muito menos uma história do bem contra mal. O mundo real é uma miscelânea de dilemas, de situações complicadas, em que os seus agentes são personagens multifacetadas, altamente complexas, com acções que oscilam conforme a flutuação dos seus sentimentos. Cada um dos nós tem uma perspectiva das coisas, e até podemos achar que estamos certos, que temos razão nisto ou naquilo, mas existem muitas outras perspectivas, cada uma única própria para cada um de nós, afectada pelas circunstâncias em que estamos envolvidos. Colocando noutros termos, o mundo não é preto e branco - é cinzento - e com The Last of Us: Part 2 a Naughty Dog quis mostrar isso através da história e da forma como é contada.
"Esta sequela é diferente de tudo aquilo que já sentiste num jogo da Naughty Dog"
Quebrar o ciclo da violência
A vingança é o combustível para a história de The Last of Us: Part 2. A sequela vai muito além da questão da sobrevivência num mundo pós-apocalíptico, aprofundado a condição humana num mundo em que deixaram de existir leis e regras para condicionar os nossos comportamentos e impulsos. Não é tanto um jogo sobre os infectados - eles continuam a existir e a afectar as vidas de todos - mas antes um jogo sobre relações humanas. Embora decorra cinco após os acontecimentos do primeiro jogo, as consequências do que aconteceu no final fazem-se sentir, a começar pela relação degrada entre Ellie e Joel. Ellie, agora uma jovem adulta, afastou-se de Joel e criou novos laços com outras personagens.
O início da história mostra Ellie - que assume o papel principal como personagem jogável - a levar uma vida relativamente pacata em Jackson, uma vila protegida por muralhas de madeira onde, ao longo dos últimos anos, se juntaram mais pessoas. Ellie tem a sua própria casa e cumpre os seus deveres, realizando patrulhas em volta da vila para avistar potenciais ameaças e eliminar quaisquer infectados que estejam demasiado próximos. Este início pacato é a calmaria antes da tempestade. As restrições do embargo para publicar esta review impedem-me de entrar em detalhes específicos da história, mas logo nas primeiras horas há um evento cataclísmico que lança Ellie numa jornada de vingança em Seattle.
Vingança, violência e sofrimento fomentam as personagens de The Last of Us: Part 2. É um jogo mais negro e mais chocante do que o anterior, em que os humanos se magoam uns aos outros de formas impensáveis. Mas violência apenas gera mais violência, e a história desta sequela procura mostrar que as acções de Ellie não recebem uma carta branca, existem consequências para as suas acções que acabam por gerar um ciclo sem fim em que as personagens magoam outros porque foram magoadas. São sentimentos ou comportamentos familiares para todos nós. Compreendemos porque razão Ellie quer vingança, mesmo que simultaneamente haja uma percepção que optou por um caminho destrutivo e que afectará as pessoas que lhe são queridas.
Um novo patamar para as narrativas interactivas
Chegar ao final de The Last of Us: Part 2, um processo que nos demorou cerca de 20 horas, culmina na conclusão de que a Naughty Dog se superou a si própria e que atingiu um novo patamar para as histórias nos videojogos. De certa forma, o estúdio teve que destruir o que criou antes - abalando concepções e as expectativas que geralmente há para uma sequela - para poder criar algo melhor, que ultrapassa tudo aquilo que fez antes. Sinto que estou a cometer um cliché a dizer isto - de que uma sequela é melhor do que o jogo anterior - mas é verdade. É um melhor jogo por afinações na jogabilidade e um mundo maior, mas acima de tudo, por causa de uma narrativa em que não há propriamente heróis nem uma distinção óbvia entre personagens moralmente boas e moralmente más. Todos somos capazes de fazer boas acções e más acções, e todos somos amados por alguém.
"O estúdio teve que destruir o que criou antes - abalando concepções e as expectativas que geralmente há para uma sequela - para poder criar algo melhor"
Mostrando múltiplas perspectivas ao longo da história, a Naughty Dog criou uma história cheia de conflitos, que nos deixa a sentir compaixão por personagens que são forças opostas. Já o tinha dito na minha antevisão a The Last of Us: Part 2, mas volto a dizê-lo aqui: pela primeira vez senti-me culpado por tirar vidas a NPCs humanos. Este é o poder do realismo, que vai muito além do realismo normalmente associado à componente gráfica / visual. Este é um jogo que leva a PS4 Pro aos seus limites (e dá para perceber isso bem pelas ventoinhas que não param de trabalhar), mas o realismo de que falo vai muito além disso. A Naughty Dog criou personagens palpáveis, com uma tamanha naturalidade que sentimos imediatamente que podiam ser uma pessoa de carne e osso. Toda esta arte transita para a narrativa, que em nada é forçada. É uma história que nos faz pensar e olhar para dentro, para quem nós somos como pessoas e como seres humanos.
Um mundo maior, mais bonito e com mais exploração
O primeiro The Last of Us era um jogo praticamente linear, com poucas opções de escolha para os jogadores abordarem os inimigos. A sequela expande largamente os níveis que percorremos, havendo muitas oportunidades para exploração e para abordagens alternativas aos grupos de inimigos que vão surgindo - sejam humanos ou infectados. A insistência na exploração é recompensada com recursos adicionais que dão sempre jeito: balas para as diferentes armas, materiais para fazer curativos, bombas ou cocktails molotovs, e os recursos necessários para fazer upgrade às armas e às habilidades da personagem. Nestas oportunidades de exploração foram incluídos pequenos quebra-cabeças, muitas vezes envolvendo encontrar a combinação necessária para abrir um cofre. O que é surpreendente, e que verificamos sempre que exploramos um novo sítio, é a atenção da Naughty Dog aos pormenores. É impossível encontrar um ângulo da câmera em que o jogo tenha mau aspecto ou em que qualquer objecto pareça deslocado.
Com a expansão dos níveis, os grupos de inimigos também são mais numerosos e inteligentes. The Last of Us: Part 2 tem uma das melhores inteligências artificiais num jogo que envolva stealth. Ainda existem, pouco frequentemente, situações em que devíamos ser avistados e não somos - sobretudo relacionado com o ângulo em que nos aproximamos de um adversário - mas no geral, a Naughty Dog conseguiu um nível de realismo comportamental superior ao que geralmente vemos nestes jogos. As deslocações dos inimigos - novamente, humanos ou não - não são previsíveis e, assim que se percebem que há alguém nos arredores, tornam-se muito mais cuidadosos e atentos (no caso dos infectados, nota-se mais agressividade). A introdução dos cães - no caso das forças da WLF - torna bastante difícil passarmos uma secção inteira sem sermos avistados. No caso dos infectados também há novas ameaças, incluindo um bruta-montes que derruba paredes e que te retira a vida com um só golpe.
É um mundo hostil em que a violência prevalece sempre. Cada morte está representada de uma forma dolorosamente realista, com planos aproximados e animações minuciosas, do melhor que a Naughty Dog já fez. Contrastando com esta violência estão esplendorosos cenários da natureza. Esta beleza está em todo lado, seja nos pequenos riachos que encontramos, na vegetação que trepou pelos grandes edifícios de Seattle, nos grandes campos abertos pelos quais cavalgamos a cavalo e nas montanhas geladas em redor de Jackson. A direcção artística de The Last of Us: Part 2 consegue, com grande eficácia, retratar um mundo que está a ser lentamente recuperado pela natureza. É uma combinação de mestre de arte com engenharia gráfica e técnica do mais alto nível, criando um jogo que é, constantemente, uma alegria para os olhos. O nível de polimento que o jogo apresenta é assustador, mostrando que o estúdio passou o jogo a pente-fino várias vezes.
Jogabilidade afinada
A base de jogabilidade de The Last of Us: Part 2 é a mesma do primeiro jogo. É um jogo de tiros na terceira pessoa com elementos de sobrevivência e de stealth. Não há propriamente muitas novidades a destacar em relação ao jogo anterior, a não ser a obsessão da Naughty Dog com a perfeição que os levou a criar um jogo altamente polido. Na jogabilidade sente-se isso principalmente nas animações, trabalhadas até à exaustão para parecerem o mais naturais possíveis. Não há movimentos robóticos nem quebras de imersão, cada passo dado por Ellie, cada uma das suas acções, apresentam uma fluidez humana. É o culminar de um estilo que a Naughty Dog começou com Uncharted, que já apresentava várias acções contextuais com objectos no cenário parar criar mais dinamismo e interacção, transformando a personagem não apenas em algo que se desloca no cenário, mas numa coisa que faz parte dele.
O que há em mais abundância na sequela são armas de contacto físico, todas elas com as suas próprias sequências de animação. A brutalidade sente-se em cada golpe e, neste caso, há que também destacar o design sonoro que ajuda a aumentar a sensação do impacto. Há machetes, tacos com pregos, chaves aperta-tubos, placas de madeira, picaretas, entre outras armas. Tal como no primeiro The Last of Us, a durabilidade destas armas é limitada. Depois de alguns golpes, as armas partem-se. No caso das armas mais frágeis, é compreensível. No caso de armas que são completamente feitas de metal, como a chave aperta-tubo, parece-me improvável que se partisse tão rapidamente. Há também as armas de fogo - nesta categoria temos pistolas, revólveres, caçadeiras, espingardas, lança-chamas e metralhadoras. Todas as armas de fogo podem ser melhoradas para terem maior estabilidade, um carregador maior, entre outras coisas, sempre que encontras uma bancada de trabalho.
Na dificuldade moderada - que foi a que escolhi para realizar esta análise - a escassez de munição não é assim tão grande. Várias vezes dei por mim a ter o espaço para recursos cheio. Ainda assim, mesmo com recursos cheios, os confrontos com inimigos são sempre desafiantes. Os adversários humanos sabem mesmo apontar. Com um tiro certeiro, Ellie cai ao chão e fica ainda mais vulnerável a mais tiros. No caso dos Serafitas, as setas dos seus arcos podem ficar presas no corpo, obrigando Ellie a procurar rapidamente abrigo para extrair a flecha (caso contrário, fica com os seus movimentos bastante limitados). Nos encontros com os infectados, os Clickers são sempre uma grande ameaça e que te tiram a vida com um só golpe se não te conseguires desviar. Depois, há outros tipos de infectados mais avançados - alguns esperam por ti em sítios escondidos, outros libertam nuvens de toxinas que fazem Ellie perder lentamente vida. As ameaças são constantes em The Last of Us: Part 2.
Um jogo grandioso que não vais querer perder
A narrativa de The Last of Us: Part 2 é, com os restantes elementos, unha e carne. Há muitas coisas que tornam este jogo memorável e grandioso e que não te posso dizer sem estragar a surpresa (como por exemplo, a segunda metade do jogo, que te altera completamente a forma de olhares para tudo). O que posso dizer, contudo, é que este é um jogo para quem ama histórias interactivas e personagens marcantes que diminuem a barreira entre o virtual e a realidade. É também um jogo para quem gosta do inesperado. Com esta sequela, a Naughty Dog optou por um caminho que ninguém esperava e com isso superou-se. Deita fora aquilo que achas que sabes ou que possas ter lido, The Last of Us: Part 2 é muito mais do que isso.
"Deita fora aquilo que achas que sabes ou que possas ter lido, The Last of Us: Part 2 é muito mais do que isso."
Sete anos depois do lançamento do primeiro The Last of Us, e novamente encerrando uma geração para a Sony, a Naughty Dog voltou a sacar da cartola um jogão. Confesso que fui um dos primeiros a questionar a existência de uma sequela, muito em prol do que considerei ser um final perfeito no primeiro jogo, mas agora estou contente por esta segunda parte. Tornou-se para mim já num jogo de referência, que aumenta a fasquia para todos os jogos que serão lançados no futuro. O melhor jogo de 2020 até agora, e um dos mais importantes desta geração.
Prós: | Contras: |
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