The Surge - Análise
Fricção científica.
A série Souls, desenvolvida pela japonesa From Software, conduziu os jogos de role play a um novo nível. Não apenas no campo da fantasia medieval e do lore que imediatamente promoveu como imagem de marca. Uma das qualidades que distinguiu a série das demais foi a natureza épica do combate, no qual cada elemento e objecto seguro por uma mão pode fazer a diferença. A escalada da dificuldade é só um reflexo de uma direcção traçada à priori: conduzir o jogador por uma espécie de calvário, onde apenas espontaneamente encontra alguns espaços de repouso antes de continuar a tortuosa caminhada solitária.
Não tardou até que o design bem sucedido fosse alvo de acolhimento por parte de outras produtoras. Foi nesse contexto que a germânica Deck 13 deu seguimento a Lords of the Fallen, um jogo com uma estrutura um tanto próxima, tirando proveito de muitos dos elementos lançados pela equipa de Miyazaki, designadamente o peso das armas e a dificuldade do herói em se esquivar de poderosos e colossais inimigos.
Apesar da satisfação com que a produtora acolheu a resposta da crítica a Lords of the Fallen, os germânicos não se deram por findos neste capítulo e depois de perdida uma eventual sequela, os esforços concentraram-se em The Surge, um debruado metálico de Dark Souls, a cortina de ferro que eventualmente posicionaria o estúdio numa posição mais cimeira ao mesmo tempo que serve de repositório para algumas ideias a reter para o futuro.
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A mim agradou-me particularmente a mudança de temática. A reviravolta operada neste contexto, especialmente com uma narrativa muito mais conexa com a ficção científica, uma realidade que não nos parece tão irreal quando descobrimos que a maior potencia mundial é governada por um louco, volta a devolver alguma esperança, e que The Surge está longe de se resumir a uma matriz hereditária. São bons ventos que a Deck 13 lançou, mesmo que naquele emaranhado de metal repouse uma produção com alguns problemas, falhas e "bugs" que amiudadas vezes nos lembram que um processo de desenvolvimento com mais cuidado (e orçamento) daria melhor resultado. Apesar disso, este é um jogo que pode muito bem corresponder ao que muitos esperavam depois do último urra em Dark Souls III.
The Surge desvincula-se de algumas cerimónias recorrentes, como a edição da personagem. O protagonista é um homem chamado Warren, recém contratado pela CREO, uma empresa que através da ciência procura emendar os problemas causados no planeta pelos humanos. Curioso de resto o eclipse das vulgares classes, em prol da vocação do candidato, um processo de escolha mais harmonioso e compatível com a missão que o jogador reserva para si mesmo.
Há revisão da matéria dada nesta entrada (quando o planeta entra em colapso levam-se os humanos para o espaço), um tanto previsível quando nos apercebemos que algo corre mal, percorridos os segmentos iniciais, e depressa damos por nós a tentar sobreviver num mundo onde a ciência avançou de forma galopante, mas para mal dos pecados de Warren, de forma absolutamente descontrolada, para não dizer selvagem. Depois de transformados num operário, passamos à acção, a partir do exterior das instalações da CREO. É mais um sítio de despojos e inutilidades, o espaço a que estamos confinados, avançando através de corredores, paredes e interiores outrora bases de fabrico entretanto desactivadas.
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Apraz-me encontrar esta mudança de direcção no tema e conceito. É uma frescura eventualmente contida, na medida em que a primeira fase se revela um pouco caótica em consequência dos acontecimentos. É o mais próximo do que podemos encontrar ao acordarmos num pesadelo depois de um apagão mental. As primeiras instruções são relativamente simples e depressa aprendemos a aplicar os golpes de ataque, defesa e fuga como que instintivamente. O toque de midas repousa na melhoria do núcleo da nossa personagem, um sistema que possibilita a aplicação de toda uma gama de "upgrades"; dos braços, às pernas, passando pelas protecções.
O avanço é periclitante. Tudo é calculado e cerebral, nomeadamente a zona dos inimigos que pretendemos alvejar. A cabeça é o mais óbvio, mas alguns deles estarão bem protegidos. Será útil atacarem primeiro um braço de forma a anular a arma que trazem na mão. Cada ataque consome uma porção de resistência, pelo que convém ter em conta a vossa capacidade de resposta, retirando quando necessário. No final podemos terminar o combate com um golpe de assinatura, obtendo mais pontos e se possível sucata, matéria essencial para o fabrico de novo equipamento. As peças que retiramos dos inimigos podem depois ser utilizadas no nosso fato especial.
Se perdermos a vida, deixamos ficar no ponto onde caímos todo o espólio acumulado. Desta vez há um tempo limite para recuperar a tralha, uma contagem decrescente que é suspensa se optarmos por combater novamente os adversários, que entram em modo "respawn", reagindo novamente à nossa passagem. Como seria de esperar, certas passagens tornam-se demolidoras e um verdadeiro arraso para quem não estiver preparado para repetir os mesmos processos. No final tudo gira em torno da eficácia e habilidade com que controlamos a personagem, embora tenhamos à nossa disposição uma série de assistentes, como alguns injectáveis que melhoram temporariamente o nosso desempenho e habilidade. Outros implantes, a título definitivo, terão que ser colocados numa espécie de sala de operações, aí sim onde operam o crescimento de Warren. As possibilidades de expansão da personagem são grandes, sendo por isso fundamental desenvolver o núcleo, o grande consumidor de sucata.
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As áreas apresentam uma composição labiríntica, com muitos pontos de conexão embora nem todas as secções estejam imediatamente acessíveis. Terão primeiro que contornar alguma zona ou avançar por dentro de molde a abrir um portão fechado pelo lado de fora. Depois encontramos zonas contaminadas, onde há que manter uma certa distância, enfim, todo um conjunto de perigos e desafios que constantemente bloqueiam e lançam a nossa personagem para mais uma batalha. O design é apelativo, mas alguns problemas de câmara tornam por vezes complexa a pontaria ou fuga, enquanto que a aquisição de um alvo (prender um inimigo) nem sempre produz os efeitos mais esperados.
Depois de Lords of the Fallen, The Surge é um novo capítulo, com uma nova narrativa e sobretudo uma temática futurista e de forte contexto científico. É neste quadro que encontramos os momentos mais libertadores e felizes nesta obra, mesmo quando as mecânicas dominantes nos apontam para uma linha de continuidade da anterior obra medieval. Não é um jogo que funciona sempre bem, o seu design não é tão fulgurante, enquanto que a narrativa pode seguir uma deriva algo previsível. Mas se é isto que procuram, um jogo difícil de superar, uma barra de metal que não cede facilmente, então este desafio está composto à vossa medida.