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Where the Heart Leads - Review - Descida ao âmago do ser

Pelas fendas da ficção.

Com algumas subtilezas narrativas, esta é uma jornada maioritária em diálogos, mecânicas redundantes e alternâncias no plano técnico.

Quando Whit desce numa banheira pelo imenso buraco que abriu sob a sua quinta, no seguimento de uma feroz tempestade, há como que uma metáfora da entrada do ser no seu âmago. A descida prossegue até um mundo novo, que na verdade está repleto de bruma e se reconstrói à medida que são evocadas as suas memórias, desbravando mais uma porção de território sempre que é completado o reconhecimento de um tempo passado. Pelo meio há escolhas e opções a tomar, numa ramificação que se estende por múltiplos caminhos, os ramos narrativos, as bifurcações e os desfechos, múltiplos finais. As decisões tomadas afectam a linha de progressão, que trilhos iremos percorrer, que mais percursos e cenários iremos atravessar em passo lesto.

Do ponto de vista narrativo é uma óptima aventura, esta da Armature, estúdio texano responsável por jogos como ReCore, e que agora com Where the Heart Leads pretende seguir um outro percurso. Longe vai o tempo de Metroid 3: Corruption. De um jogo de puzzles e acção para uma aventura de forte componente textual vai uma grande diferença. No entanto, é patente o interesse em criar uma aventura em moldes distintos, na qual a componente narrativa, com uma estrutura diversificada e profunda nos seus enlaces, ocupa o centro do jogo.

Porém e como qualquer aventura num mundo tridimensional, formatada em videojogo, depende das mecânicas e dos sistemas de interacção. As possibilidades de adaptação são imensas e temos visto ao longo de décadas como há múltiplas opções de interacção. A Armature optou por um diferente modelo, menos usual. O mundo é na mesma tridimensional, mas a perspectiva isométrica (afastada) com que acompanhamos a nossa personagem (Whit) parece transportar um pouco da perspectiva dos jogos em 2D, ainda que isso seja realmente uma ilusão de óptica. A isto acresce um sistema de movimentação de câmara que consiste na aproximação ou afastamento, não nos deixando rodar em torno da personagem. A partir daí, movimentando a nossa personagem, podemos interagir com uma série de elementos indicados no ecrã. Umas vezes de forma mais óbvia, através de ícones de interacção, outras vezes pela chama de atenção de sons ou imagens, como brilhos.

Preparativos para a descida.

O coração como guia pelas memórias

Whit Anderson é pai de família. Habita uma quinta, com o seu agregado, possui um cão como animal de estimação e parece nortear-se por princípios morais, o que é evidente a partir do momento que decide salvar do buraco o comparsa de estimação. Mas mal sabia ele que a salvação do seu fiel amigo era o prelúdio da sua revisita interior. Após aquela descida, o mundo que conhece não mais será o mesmo, embora possa fazer por ajustar ou não a realidade, de acordo com os seus princípios, aquilo que o demove.

Não há diálogos com vozes. Todas as conversas são colocadas em pequenas vinhetas, em texto, tão minúsculas que se torna impossível ler a uma distância razoável do ecrã. E aqui entramos logo num dos primeiros problemas do jogo, a juntar à tal dificuldade em saber quando tirar proveito da aproximação e afastamento da perspectiva. O tamanho tão reduzido das vinhetas, com uma letra tão diminuta torna quase impossível a leitura em modo automático. Nalguns casos podemos carregar no L2 para a abertura de uma janela que nos mostra todos os diálogos. Mas fazê-lo sempre obriga a pausar o jogo, o que vai quebrando o ritmo.

Por outro lado, aprendemos desde cedo a manobrar a perspectiva da câmara, mas nem sempre o seu uso se mostra possível. Há situações nas quais a câmara simplesmente não move nem permite o afastamento ou aproximação. Depende dos contextos. Como não adivinhamos, situações há que acabam por se mostrar insólitas ou levam mais tempo a descobrir, como se o jogo teimasse em impor a mesma perspectiva isométrica e afastada que torna complicado o reconhecimento facial e até corporal da personagem, ao ponto de não sabermos se está bem inserida no espaço para seguir em frente. Eu não duvido que isto passa por uma escolha consciente dos produtores, de forma a colocar a personagem em ambientes de maior dimensão. Na verdade, os cenários são gigantescos e as personagens diminutas.

No entanto, os cenários não são muito detalhados ou pormenorizados, o que parece ir de encontro a uma menor sofisticação e produção, talvez de molde a evitar ambientes sobrecarregados de loadings. Muitas vezes os espaços mostram-se vagos, algo despidos, simples, com construções a emergirem sobre rochas ou plataformas a partir de espaços opacos. Há, no entanto, uma temática singular associada em cada grande área. Encontramos também pequenos objectos bem pormenorizados, mas de um modo geral a apresentação toca o rudimentar. Como acontece nas memórias, focamo-nos apenas no evento central, naquilo que mais nos marcou e tendemos a esquecer o envolvente. Por isso é que muitas vezes, quando voltamos a um sítio que deixamos de ver durante décadas, nos parece diferente, quiçá mais pequeno por comparação com o mesmo espaço visto a partir da nossa memória.

É com esse escopo que a Armature parece apostada em desenvolver a aventura. Todos os espaços e cenários reportam-se a contextos e diferentes momentos da vida de Whit. Momentos específicos, habitados por construções e personagens concretas, mas algo desligados e desconexos. As escolhas de Whit irão afectar a sua vida, para o bem ou para o mal. As suas tarefas são sobretudo mundanas e passam por pequenos trabalhos, resolução de problemas, nada na realidade de muito substancial dos episódios vividos. Os produtores referem os múltiplos finais como uma mais valia para repetir a campanha, se seguirmos outras respostas, eventualmente um caminho obscuro para Whit, já que a princípio é difícil desejar-lhe outra coisa que não o seu bem. Mas, depois de terminado, e estamos a falar de uma campanha que chega à dezena de horas de duração, é mais difícil sentirmo-nos tentados a voltar ao jogo, só para escolher um diferente percurso e só para verificar até que ponto é realmente diferenciador tomar outras decisões.

A componente textual é grande, demasiado grande. A ausência de vozes nem é o maior entrave, apenas o tamanho diminuto das vinhetas e da letra é que se revela um problema, como já aludi. Diálogos que ocupam um espaço central. Este é um jogo "pesado" em texto, através de constantes e persistentes conversas com personagens da vila e muitas que habitam as memórias. As cinemáticas são quase todas "in game", pausam a acção por instantes, enquanto que os sons do ambiente e a banda sonora é tudo no que toca a sonoridades. É pena que a banda sonora seja por vezes pouco selectiva, com as mesmas faixas a sucederem-se por grandes períodos.

A casa da árvore.

As consequências nos momentos nevrálgicos da aventura

Com uma ênfase tão grande na narrativa e no poder das decisões, afectando a marcha da progressão, onde Where the Heart Leads nos deixa a reflectir é nos eventos de maior carga dramática, onde palpita a angústia. E é dentro do drama familiar que está grande parte do suco narrativo. Na relação com os seus familiares, nomeadamente com os pais e a sua futura (e actual mulher). O desvio temporal é grande, com muitas situações inscritas num passado distante, passíveis de alteração e repercussão no presente.

Porém, para chegar a esses momentos dramáticos, os conflitos emocionais, há que atravessar diálogos e sequências ofuscados, alguns bastante irrelevantes. Esta menor coerência narrativa, com espaços mortos, pode ser um problema. Quando pensamos em jogos de maior coerência e solidez narrativa, como Last of Us, Where the Heart Leads não encontra grande paralelo. Não é relevante a existência de múltiplos finais se o caminho para lá chegar é inconsistente, dotado de altos e baixos. Não que lhe falte carga dramática, os tais momentos angustiantes, mas é a exploração e a conjugação entre interacção e eventos narrativos que impedem o jogo de cimentar a fasquia num ponto alto. Onde Last of Us consegue ser acutilante e arrojado na dimensão do ser humano, Where the Heart Leads é comedido e menos ambicioso.

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A produção visual não está isenta de reparos e é também dotada de algumas inconsistências. Aplaude-se a opção pela técnica cel shade na construção de alguns cenários, através de bons contrastes e uma paleta de cores envolventes. São bons os efeitos de luz, mas também há descuidos, visíveis num regular pop up quando avançamos e até na quebra de fluidez em áreas atravancadas de objectos. Há algum cuidado no design, mas nunca chega ao ponto de se tornar surpreendente.

Where the Heart Leads é uma aventura 3D de forte componente narrativa com alguns pontos de interesse, na forma como é apresentada sob a forma de memórias tendo por base a vida de uma personagem e todos os que com ela convivem e conviveram. Porém, o caminho para chegar a um dos múltiplos finais é feito com solavancos e momentos de maior palidez narrativa. A simplicidade das mecânicas, ao ponto de quase se tornarem redundantes, parecem servir apenas o propósito maior da narrativa. É como o peixe que morre pela boca. De tanto apetite pela narrativa morde o anzol. Where the Heart Leads incorre no erro dos projectos que nascem demasiado ambiciosos e que no momento da passagem do argumento para o computador e da adaptação às mecânicas, incorre em falhas que travam a ideia inicial, maculando a marcha. Não é de todo um jogo perdido, até porque nos sentimos compelidos ao desafio e alguma coisa fica desta narrativa, mas tem dificuldades em convencer face ao escopo original.

Prós: Contras:
  • Ambiente
  • Angústia nalgumas decisões
  • Exploração de alguns temas
  • Impacto das decisões no desfecho da narrativa
  • Cenários e personagens simplificados
  • Mecânicas simples
  • Tarefas mundanas
  • Gestão da perspectiva

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