Yakuza 6: Song of Life - Análise - A chama do dragão
Kamurocho tem mais encanto na hora da despedida.
Não é usual encontrarmos um protagonista de uma série fortemente cinematográfica ver o seu papel perdurar tanto no tempo. Normalmente, uma trilogia é suficiente para esmifrar um herói, antes de passar o testemunho a uma nova personagem. Kazuma Kiryu, a estrela - gangster coração de ouro -, de Yakuza, conheceu o primeiro jogo de acção ainda no tempo de produção da PlayStation 2, em 2005. Com seis episódios centrais e dois "spinoffs", as narrativas em torno de Kazuma ganharam um peso decisivo nesta construção de uma ficcional Tóquio moderna, sobretudo uma interpretação da Yakuza nipónica, um sub-mundo povoado de gangsters, onde se confrontam poderes e se ceifam vidas em jogadas de risco, enquanto a cidade, inspirada em Tóquio, fervilha como grande metrópole e assiste à correlação de forças.
Yakuza 6 representa a despedida do herói que atravessou várias gerações, sobrevivendo à ceifa de vidas e disposto a afastar-se do crime. É um jogo que assinala a despedida mas deixa luzes para um recomeço. Kazuma Kiryu parece uma pessoa diferente quando começamos a jogar este episódio. Disposto a regressar ao sol paradisíaco de Okinawa, ao orfanato onde se sente verdadeiramente em casa, depois de um período a cumprir pena na cana, as forças do sub-mundo de Kamurocho acabam por puxá-lo de volta "just when I thought I was out...they pull me back in". Agora a expressão é diferente: "How do I always end up back in this damn city?". Quando julgava que iria viver longe das lutas de rua, Kiryu, próximo dos 50 anos, é novamente empurrado para o distrito ficcional da cidade Tóquio. Kamurocho é um sítio que nos desperta uma sensação de familiaridade, mas nunca foi tão boa como agora.
Neste final surpreendente, raro e especial, Kazuma é movido por uma ligação quase paternal, da sua ("filha adoptiva") Haruka. ídolo pop dos japoneses, uma impactante e decisiva personagem feminina que abandonou os palcos em favor da "família" e da reunião com o "tio Kazuma" no orfanato, mas que acaba abdicar do tempo depois dos palcos quando ele ainda cumpre pena. Na tentativa de a reencontrar e depois de restituído à liberdade, Kazuma está mais uma vez na grande metrópole Kamurocho, uma das duas grandes áreas deste Yakuza.
Curiosamente, neste jogo de despedidas - e de certa maneira de reencontros - a fervilhante urbe inspirada em Tóquio nunca esteve tão viva, de dia ou de noite. As ruas estão preenchidas de transeuntes e rufias. As lojas apertam-se, há uma constante vida que parece chamar por nós a cada passo e rebuliços nos espaços recônditos. É impossível não olharmos para Kamurocho sem pensarmos na moderna capital japonesa na sua dimensão abissal. A riqueza dos novos visuais e fulgor das constantes e já habituais sequências cinematográficas são fruto do Dragon Engine, o novo motor gráfico adoptado pelos produtores, que dá a The Song of Life uma nova chama, a chama do Dragão. Yakuza 6 é também um jogo familiar que em nenhum momento se separa do que é a espinha dorsal da série. Nisso é um jogo bastante conservador e pouco dado a grandes riscos. No melhor, é um avanço daquilo que podíamos esperar, com mais subquests, mais pedidos de ajuda, colaborações e uma série de mini-jogos e desafios adicionais que nos deixam completamente rendidos à dimensão da cidade.
É verdade que por comparação com outras cidades em mundo aberto, Kamurocho é bem restritiva, mas é tudo tão conciso, detalhado e repleto de espaços onde podemos entrar, tendo em conta as famosas arcadas Club Sega, que facilmente nos perdemos nas suas múltiplas atracções, em especial à noite, naquelas luzes neon, jogos de sombras e ruídos sonoros, como se estivéssemos numa gigantesca feira popular. Aliás, esta cidade é o bom exemplo de uma actual metrópole de grande densidade urbana, onde as pessoas circulam enquanto navegam no "smartphone", rendidas às múltiplas aplicações e ensimesmadas. Nisso, o gangster de fato claro e rosto severo parece provindo de outro planeta, desconhecedor de muita tecnologia que povoa o território e surpreendido com o que lhe anunciam como "chats de namoro virtual", observando com relutância a aplicação que um vendedor de rua lhe instala no telemóvel, chamada Hiji e que é capaz de entabular conversa.
Mas, esta personagem sensata, fria e desconhecedora das tecnologias é sobretudo um gangster com coração de ouro, dotado de uma preparação física invejável. O peso da idade parece suavizar-lhe os movimentos, como que lançado numa toada mais estratégia quando atirado aos combates, em vez da pura velocidade. Contudo, não pensem que isso é permanente. A experiência acumulada acaba por lhe valer uma subida de nível e a aquisição de mais poderes e técnicas que o transformam num tanque, um "one man army" capaz de despachar dezenas de membros das "triads" chinesas numa só ronda. Kazuma chega a Kamurocho à procura de Haruka, mas ao investigar pelo seu paradeiro, envolve-se inevitavelmente na luta entre o "Tojo Clan" e as "Triads" chinesas, cada vez mais dispostas a quebrar uma série de pactos e a tomar o controlo da cidade a partir da sua "China Town". Pelo meio há um braço do "Tojo Clan" a ganhar força.
Gradualmente, a narrativa começa por trazer algumas personagens esperadas e outras surpreendentes, como Haruto, o filho recém-nascido de Haruka. Entre uma série de reviravoltas e progressões mais ou menos esperadas de um guião que volta a surpreender, o protagonista embarca para Onomichi, uma pequena cidade pescatória em Jingaicho, Hiroshima. Como contraponto à ebulição de Kamurocho, esta cidade traz-nos à memória um pouco da forma de Dobuita, em Shenmue, pelo sossego e tranquilidade reinantes, uma cidade erguida sobre um vasto morro, com uma vista privilegiada para o mar. Ali as pessoas têm vidas menos agitadas (há um tom permanente de pacatez), vivem nas suas rotinas, mas nem por isso é uma cidade isentada das tribulações por que passa Kamurocho. Também ali Kazuma terá que enfrentar "gangs" e rúfias, muitos da pior espécie, ligados a outra organização a Yomei Alliance.
Como alternativa a Kamurocho, Onomichi alivia-nos do peso das ruas que conhecemos tão bem e projecta um novo ordenamento. Ainda que a a oferta de diversões seja menor, há muitas surpresas para descobrir, em cada rua e em cada recanto, nem que seja a dar uso ao telemóvel para umas quantas "selfies" ou para se jogar na primeira pessoa, premindo o botão do d-pad para a frente. Sendo interessante, essa perspectiva não permite correr nem atacar os adversários. É aliás frequente que ocorram muitos encontros casuais e passem grande parte do tempo a melhorar as vossas habilidades depois de acumularem umas quantas batalhas. Grupos de bandidos passeiam constantemente pelas artérias, à espera de confusão. Podem, se quiserem, afastar-se ou deixá-los passar desde que não atraiam as atenções, mas quase sempre a melhor opção passa por andar à pancada. Não só porque melhoram os vossos pontos de experiência e podem ganhar mais habilidades como aprendem a lutar convenientemente, essencial para vencer os "bosses" em fases cirúrgicas de cada um dos capítulos. Refira-se que desapareceram os "loadings" por ocasião da passagem de alguns pontos do mapa, o que é muito útil.
Existem alternativas ao "street fighting", nomeadamente a ida regular ao ginásio, onde podem treinar o vosso corpo e melhorar as habilidades com base no reforço muscular. Para isso terão que cumprir um plano de treino criterioso que também envolve uma dieta específica e um prato adequado às necessidades nutricionais. Para serem bem sucedidos terão que descobrir o restaurante e o prato certos, o que obriga a andar pela cidade à procura do garfo. Nesse périplo é bem provável que tenham de enfrentar mais rúfias. É um equilíbrio curioso mas suficientemente amplo para nos deixar escolher a opção que mais nos agrada.
O sistema de combate permanece bastante próximo ao que nos habituamos a encontrar. É sobretudo um sistema muito ofensivo, com elementos de parada e resposta. Efectuar um "parry" pode desbloquear um combate mais equilibrado a nosso favor e abrir um espaço para desferir uma série de socos e pontapés letais assim que o medidor de "heat" está no pleno, reconstituíndo as 3 orbs. Ao pressionarem o R2 a personagem adquire uma aura de poder que lhe fortalece as combinações. Quando bem sucedidas abre-se uma janela para uma série de "quick time events". A ordem nunca é a mesma, mas terão que ser lestos e premir os botões nos exactos momentos para que não se perca o efeito útil: um ataque devastador capaz de arrancar 1/4 da barra de vida do adversário.
A distribuição dos pontos de experiência é igualmente eficaz, sem grandes complexidades. Podemos escolher os pontos de evolução como saúde ou força e depois seleccionar as habilidades. As melhores consomem mais pontos e geram efeitos mais devastadores quando a personagem as aplica com sucesso. É uma optima evolução, sentida ao cabo das primeiras horas de jogo e consolidada adiante. Kazuma parece um pouco lento ao começo mas depressa adquire a agilidade por que tanto se notabilizou, fazendo dos seus punhos e pés armas letais. De fora ficaram alguns estilos de combate que fizeram furor em edições passadas. Parece ser uma retirada significativa, mas em contrapartida a árvore de habilidades está bem mais apetrechada.
De resto o combate é altamente gratificante, permanecendo como um dos pontos altos da experiência. O grau de exigência acentua-se assim que somos forçados a combater grupos mais fortes de "gangs" rivais e sobretudo os "bosses". Claro que podemos usar muitos objectos que estão à nossa mercê como bicicletas, martelos ou pinos . Estes são menos eficazes enquanto que uma bicicleta permite criar uma válvula de segurança à nossa volta. Todavia, existem imensas técnicas e opções de ataque, pelo que a sua gestão em combate é fundamental.
Como sempre, existem imensos pontos onde podem reabastecer os indicadores de alimentação. Comer um delicioso hambúrguer, um bento, beber um refrigerante ou mesmo álcool, quando a sede e a fome apertam. A cidade está repleta de máquinas de venda automática e lojas onde encontram algo que possa ser do vosso agrado. Diversidade é a palavra de ordem, e de facto poucas coisas se repetem, ao contrário do que era habitual nos primeiros jogos da série onde tínhamos muitas vezes as mesmas lojas.
Depois, claro, existem inúmeras distracções, já uma marca na série. Os sempre famosos Clube Sega, onde podem jogar Virtua Fighter 5 Final Showdonw e PuyoPuyo ou então experimentar jogos retro como Super Hang-on, Out-Run e Space Harrier, entre outros. Estas arcadas são um mundo paralelo relativamente a outras opções já habituais, nomeadamente o Karaoke (agora quando a personagem entra no modo espectáculo são mostradas cenas de momentos pretéritos, como que em jeito de recordar é viver). Depois ainda há o baseball, a pesca submarina e a criação de um clan de lutadores.
É fácil perdermo-nos na quantidade de missões secundárias e alternativas. Quase sempre são activadas através de encontros fortuitos mas podem envolver diligências mais ou menos demoradas. Numa missão terão que pesquisar por um objecto solicitado por uma fã de Haruka, só disponível numa loja. Entre permanentes deslocações na cidade, as missões secundárias promovem um rápido conhecimento de pontos relevantes, ao mesmo tempo que dilatam a experiência e contribuem para o fortalecimento da personagem.
Quando comparado com outros jogos de mundo aberto, a escala das cidades de Yakuza 6 é manifestamente reduzida. Além disso, apesar das melhorias e do factor diversão que emerge em Kamurocho nas suas múltiplas actividades, dá a sensação que Song of Life ainda é um prolongamento dos jogos anteriores. É um mini mundo aberto "sui géneris" e único, mas ainda com uma grande margem de progressão para algo maior, como um novo Yakuza criado com base nos modelos dos jogos anteriories. Onomichi é como uma ponte, uma transição, porventura a semente da renovação e nova direcção para a série.
Yakuza 6: Song of Life dá um bom seguimento aos anteriores episódios da série e perfila-se como um episódio central. É sobretudo uma história sobre violência, uma jornada emocional especialmente assente nesta ligação entre Kazuma e Haruka. As cinemáticas regressam em larga escala, com rostos muito realistas e boas actuações, podendo ser revistas numa secção, em separado, para que nada se perca. Há uma tensão em muitos momentos deste desfecho, uma escalada no grau de violência e no âmbito de protecção que Kazuma é capaz para proteger "os seus", bem como importantes construções sobre paternidade. Sacrifícios serão realizados e no confronto ninguém sairá ileso. É assim colocado um ponto final nesta já longa presença de Kazuma em Yakuza, seguramente memorável e que abre espaço para novas ideias, dando à Sega um alento para reescrever um novo guião com novos protagonistas e outras cidades, é que Kamurocho dificilmente se compagina com outra figura que não seja o lendário Kazuma Kiryu.