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Citizen Zelda: Um modelo de referência 2ª Parte

Um modelo de referência.

Estes desafios sucessivos, mesmo os secundários, vêm sempre acompanhados de um razoável nível de recompensa, isto leva a que o jogador não sinta um caminho linear para progredir, mas projecte para si um variado número de objectivos que deseja atingir, para além do objectivo principal. Para que o estado de flow permaneça, é necessário recompensar o jogador de acordo com a exigência do desafio tendo sempre em conta que os jogadores são diferentes, e que o seu domínio do jogo vai aumentando à medida que avançam dentro do mesmo. Basicamente trata-se de um ciclo de desafios crescentes acompanhados de uma recompensa. Em OoT, os momentos de maior tensão e dificuldade encontram-se no interior das Dungeons, e os mais simples e que podemos completar de forma mais relaxante encontram-se espalhados pelo mundo e podem ser abordados a um ritmo mais calmo, já que muitos destes não são sequer obrigatórios. Consideremos por exemplo o seguinte diagrama retirado da obra de Schell.

Fig. 10 – Canal de flow Schell (2008:121)

Para que a experiência num videojogo permita ao jogador manter o estado de flow é importante que o jogador não passe demasiado tempo em nenhum dos campos em cinzento à medida que a dificuldade do jogo e o seu domínio do mesmo (skills) aumentam, ainda assim este caminho nem sempre é linear como vemos pela linha em espiral no gráfico. Tal como em Ocarina of Time a alternância entre desafios de maior tensão e ansiedade (corridas, puzzles com tempo limite, lutas com bosses), e outros que facilmente aborrecem o jogador (exploração, colecção de objectos, labirintos, mini-games), oferecem provavelmente uma experiência muito mais interessante para os jogadores. Ocarina of Time oferece sensivelmente vinte e cinco horas de jogo até completarmos o objectivo principal, obviamente a duração aumenta se decidirmos completar o jogo completamente, ou seja, descobrindo todos os tesouros e vencendo todos os objectivos secundários. Este progresso pode ser melhor explicado pelo seguinte gráfico:

Fig. 11 – Gráfico de progresso em Ocarina of Time.

Cada jogador transporta consigo um historial de experiência com diferentes convenções de jogo, a isto podemos chamar de literacia dos videojogos (Gee, 2003; Pereira, 2009), ou seja, um conhecimento que serve de competência ao jogador na forma como interage com o jogo e que é apreendida através da experiência. Por isso existem denominações que segmentam os jogadores em "casual gamers" e "hard-core gamers", aquilo que será considerado para um hard-core gamer um desafio fácil, poderá trazer imensas dificuldades a um casual gamer. É nesta lógica que a variedade do gameplay num jogo necessita de responder a vários planos distintos de dificuldade. Ocarina of Time resolve a questão proporcionando experiências bastante diferentes ao longo de todo o jogo permitindo que uns avancem mais rápido que outros, sentindo no entanto que os pequenos objectivos contribuem necessariamente para um todo em que recompensa é maior do que nas partes.

Conclusão

Em modo de conclusão, a Nintendo conseguiu surpreender mesmo aqueles mais familiarizados com os anteriores jogos da série, e proporcionou uma experiência muito rica, com uma mistura equilibrada entre função, diversão e recompensa dentro de um ambiente coerente repleto de eventos, acções e aventura, serão poucos os momentos em que é dado espaço ao jogador para se sentir aborrecido por ausência de objectivos. A fluidez discursiva do ambiente narrativo proporciona uma aventura gráfica 3d na qual o jogador persegue o objectivo final da narrativa sentindo-se em pleno controlo do media o que lhe permite chegar ao final do jogo com um sentimento de gratificação conseguido.

Após a votação na EDGE e após esta análise, The Legend of Zelda: Ocarina of Time (1998), é um clássico e muito provavelmente representará para a história dos videojogos aquilo que Citizen Kane (1940) representa já para a arte cinematográfica. Citizen Kane vem sendo eleito desde 1962 pelos críticos da revista Sight & Sound do British Film Institute como o melhor filme de sempre, com novas votações a cada dez anos (1962, 1972, 1992, 2002). Esta votação foi alargada aos realizadores de cinema em 1992, os quais votaram também Citizen Kane como o melhor filme de sempre, votação repetida em 2002 com os mesmos resultados. Nestas votações o número de filmes considerados é bastante alargado, a lista considerada em 2002, continha 886 filmes. Os votantes são dividido em críticos e realizadores, tendo votado para a lista de 2002, 145 críticos e 108 realizadores. São estes os números que nos permitem com alguma segurança assumir Citizen Kane como o artefacto fílmico que identifica um modelo, ou protótipo da linguagem cinematográfica. É neste sentido, apesar de a votação da EDGE não poder proporcionar uma leitura de resultados quantitativos à semelhança da Sight & Sound, permite dado o seu estatuto no meio, apontar algumas possíveis direcções para o futuro. E essas direcções foram também em certa medida e de modo qualitativo aqui identificadas.

Ao mesmo tempo Miyamoto ficará na história dos videojogos, não só pelo trabalho em Ocarina of Time mas muito por esse, o Orson Welles dos videojogos. Citizen Kane, ultrapassou convenções, destronou regras, criou novos modos de ver e olhar, é responsável por uma afinação de toda uma máquina estilística por detrás das capacidades afectivo narrativas do cinema. O mesmo poderá ser dito sobre Ocarina of Time agora na linguagem, gramática e estética dos videojogos. OoT abriu imensos caminhos e essencialmente novos modos de interagir. Claro que nos dias de hoje os jogadores são bastante mais exigentes do que há onze anos atrás, e jogar OoT hoje não transmite a mesma experiência que no passado, no entanto, o resultado da votação da EDGE demonstra que em muitos aspectos OoT é responsável por esta exigência, e que se tornou um título muito marcante na memória de quem o jogou na altura.

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